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HarperCollins 200 anos. Desde 1817.

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Gun Games

Título original: Gun Games

© 2012, Plot Line, Inc.

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente por HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutora: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

 

Imagem da capa: Dreamstime.com

 

ISBN: 978-84-9139-146-3

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatória

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Capítulo 40

Se gostou deste livro…

 

 

Para Jonathan

Capítulo 1

 

Antecipou o problema assim que entraram pela porta.

Dirigiam-se para ele: eram cinco, três rapazes, duas raparigas, e todos deviam ser mais velhos do que ele, mas, provavelmente, ainda estavam no secundário. Os rapazes tinham alguns músculos, mas não demasiados, o que significava que conseguiria lidar com eles individualmente. Em grupo, não teria a mínima hipótese. Além disso, Gabe não ia procurar uma luta. Da última vez que acontecera, magoara a mão temporariamente. Tivera sorte. Talvez voltasse a tê-la. Se não, tinha de ser inteligente.

Levantou os óculos na ponta do nariz e continuou a olhar para o livro até o grupo se aproximar. Mesmo nesse momento, não levantou o olhar. Não ia acontecer-lhe nada dentro de um Starbucks… Olhou para a página que tinha à frente e a mente trabalhou a mil à hora.

— Estás no meu lugar — avisou um dos rapazes.

O pai enfatizava sempre que, se alguma vez tentassem atacá-lo, o melhor era lidar com o líder. Porque, com o líder fora de combate, os outros caíam como peças de dominó. Gabe contou até cinco antes de levantar o olhar. O tipo que falara era o maior dos três.

— Desculpa? — perguntou Gabe.

— Disse que estás no meu lugar. — E, para enfatizar as palavras, afastou o casaco e deixou que Gabe visse a pistola que tinha na cintura das calças, possivelmente um dos piores lugares para guardar uma arma sem cinto. Havia apenas duas pessoas no mundo de quem Gabe aguentava tolices e não estava à frente de nenhuma delas. Ceder seria um erro. Por outro lado, enfrentá-los também seria um erro. Por sorte, o tipo deu-lhe a solução perfeita.

Gabe levantou o dedo indicador.

— Importas-te? — Lentamente e com cuidado, afastou o casaco do rapaz com o dedo e ficou a olhar para a pistola. — Uma Beretta 92FS com punho personalizado. — Fez uma pausa. — Não é má. — Soltou o casaco. — Sabes que a empresa acabou de lançar um novo modelo? A 96A ou uma coisa dessas. É tal como a série 92, mas tem maior capacidade de tambor.

Gabe levantou-se. Frente a frente, era cerca de cinco centímetros mais alto do que o da pistola, mas não tencionava gabar-se da diferença de altura. Deu um passo para trás para que ambos tivessem espaço.

— Eu gosto das de cano longo… como a Cheetah 87. Para começar, é de confiança. Além disso, é uma daquelas pistolas ambidestras. Eu sou destro, mas tenho muita força na esquerda. Sabes… Nunca se sabe qual será a melhor mão para usar.

Entreolharam-se fixamente e Gabe concentrou-se no tipo da pistola. Para ele, era como se os outros quatro não existissem. Então, com um movimento rápido e fluido, afastou-se para um lado e estendeu a mão para lhe oferecer o seu lugar magnanimamente.

— Por favor…

Passaram uns segundos enquanto um esperava que o outro pestanejasse.

— Senta-te — convidou o rapaz, finalmente.

— Tu primeiro.

Continuavam a entreolhar-se e, depois, sentaram-se ao mesmo tempo. O rapaz da pistola ocupou a poltrona de couro em que Gabe estivera sentado antes. Não parou de olhar para a cara dele, sem baixar a guarda, nem mesmo por um instante. O rapaz teria cerca de um metro e setenta e cinco e pesaria oitenta quilos, tinha o peito desenvolvido e os braços fortes. Tinha o cabelo castanho por debaixo das orelhas, os olhos azuis e o queixo marcado. Por baixo do casaco de couro, usava uma t-shirt cinzenta e tinha umas calças de ganga pretas e justas. Era um rapaz bonito e, provavelmente, tinha imensas admiradoras.

— Onde aprendeste tanto sobre pistolas? — perguntou o rapaz.

— Com o meu pai — respondeu Gabe, encolhendo os ombros.

— O que é que ele faz?

— O meu pai? — Ao dizer aquilo, Gabe sorriu. — Eh… De facto, é um proxeneta. — Fez-se o silêncio que esperava. — Tem bordéis no Nevada.

O outro ficou a olhar para ele com um respeito renovado.

— Excelente!

— Parece melhor do que é — declarou Gabe. — O meu pai é um homem desagradável, um verdadeiro canalha. Também tem um milhão de pistolas e sabe como usar todas e cada uma delas. Dou-me bem com ele porque não o zango. Além disso, já não vivemos juntos.

— Vives com a tua mãe?

— Não. Ela está na Índia. Desapareceu com o amante e deixou-me ao cuidado de uns completos desconhecidos…

— Estás a brincar?

— Oxalá estivesse a brincar. — Gabe riu-se. — O ano passado foi um verdadeiro pesadelo — esfregou as mãos. — Mas, no fim, correu tudo bem. Gosto do lugar onde estou. O meu pai de acolhimento é inspetor-coordenador da polícia. As pessoas esperariam que fosse muito severo, mas, comparado com o meu pai biológico, esse homem é um santo. — Olhou para o relógio. Eram quase seis da tarde e estava prestes a anoitecer. — Tenho de ir. — Levantou-se e o outro rapaz fez o mesmo.

— Como te chamas? — perguntou o outro.

— Chris — mentiu Gabe. — E tu?

— Dylan. — Chocaram o punho. — Em que escola estás?

— Estudo em casa — respondeu Gabe. — Já quase acabei, graças a Deus. Bom, foi um prazer conhecer-te, Dylan. Talvez te veja no campo de tiro.

Virou as costas ao grupo e afastou-se lentamente. Teve de fazer um esforço para não olhar para trás.

Uma vez lá fora, começou a correr a toda a velocidade.

 

 

Rina estava a arranjar as rosas quando o rapaz entrou, ofegante e com a cara vermelha.

— Estás bem? — perguntou.

— Não estou em forma. — Gabe tentou respirar com normalidade. Tentou sorrir para a mãe temporária, mas não lhe saiu com muita naturalidade. Sabia que Rina estava a estudá-lo, a olhar para ele fixamente com os seus olhos azuis. Usava uma camisola cor-de-rosa que condizia com as flores. Tentou procurar alguma coisa pouco importante para dizer. — Que bonitas. São do jardim?

— Do Trader Joe’s. As rosas do jardim só começarão a florescer dentro de alguns meses — ficou a olhar para o rapaz e viu que os seus olhos verdes cor de esmeralda brilhavam por trás dos óculos. Passava-se alguma coisa. — Porque vieste a correr?

— Tento manter-me em forma — respondeu Gabe. — Tenho de fazer alguma coisa para ganhar energia.

— Acho que alguém capaz de praticar durante seis horas por dia tem muita energia.

— Diz isso ao meu coração.

— Senta-te. Vou buscar-te alguma coisa para beber.

— Eu posso ir. — Gabe foi à cozinha. Quando regressou, trazia uma garrafa de água. Rina ainda olhava para ele com desconfiança. Para a distrair, pegou no jornal da mesa da sala de jantar. A fotografia da capa mostrava um rapaz e o título dizia que Gregory Hesse, de quinze anos, se suicidara com um tiro na cabeça. Tinha a cara redonda e os olhos grandes e parecia ter menos de quinze anos. Gabe começou a ler o artigo com atenção.

— Que triste, não é? — comentou Rina, olhando por cima do seu ombro. — Perguntamo-nos o que raio poderia ser tão horrível para esse pobre rapaz estar disposto a pôr fim a tudo.

Havia muitas razões para perder a esperança. No ano anterior, ele passara por todas elas.

— Às vezes, a vida é difícil.

Rina tirou-lhe o jornal, virou-o e olhou para ele nos olhos seriamente.

— Parecias aborrecido quando entraste.

— Estou bem — conseguiu sorrir. — A sério.

— O que se passou? O teu pai ligou-te ou algo assim?

— Não. Estamos bem. — Quando Rina olhou para ele com ceticismo, acrescentou: — A sério. Não falei com ele desde que voltámos de Paris. Trocámos algumas mensagens. Perguntou-me como estava e disse-lhe que estava bem. Estamos bem. Acho que gosta muito mais de mim agora que a minha mãe não está cá.

Bebeu um gole de água e olhou para outro lado.

— Disse-te que a minha mãe me enviou uma mensagem há uma semana?

— Não, não me disseste.

— Devo ter-me esquecido.

— Claro…

— A sério. Não era grande coisa. Quase não lhe respondi porque não reconheci o nome que aparecia no ecrã.

— Está bem?

— Parece que sim — encolheu os ombros. — Perguntou como estava. — Por trás dos óculos, os seus olhos olhavam para o vazio. — Disse-lhe que estava bem e que não se preocupasse… Que estava a correr tudo bem. Depois, desliguei. — Voltou a encolher os ombros. — Não me apetecia conversar. Para dizer a verdade, preferia que não entrasse em contacto comigo. É assim tão terrível?

— Não. É compreensível — replicou Rina, com um suspiro. — Têm de voltar a construir vínculos antes de conseguires confiar…

— Isso não vai acontecer. Não é que tenha alguma coisa contra ela. Desejo-lhe o melhor. Só que não quero falar com ela.

— Parece-me justo. Mas tenta manter a mente aberta. Quando voltar a entrar em contacto contigo, talvez possas conceder-lhe mais alguns segundos do teu tempo. Não por ela, mas por ti.

— Se voltar a entrar em contacto comigo.

— Vai fazê-lo, Gabriel. Sabes que sim.

— Eu não sei nada. Tenho a certeza de que estará ocupada com o bebé e essas coisas.

— Um filho não substitui outro…

— Obrigado pelo discurso, Rina, mas a verdade é que não importa. Mal penso nela. — Ainda que, na verdade, não conseguisse parar de pensar nela. — O bebé precisa muito mais dela do que eu — sorriu e acariciou-lhe a cabeça. — Além disso, tenho uma substituta maravilhosa aqui mesmo.

— A tua mãe continua a ser a tua mãe. E, algum dia, vais perceber. Mas muito obrigada pelas tuas palavras.

Gabe devolveu a atenção ao artigo do jornal.

— Ena, o rapaz era da zona.

— Sim, é verdade.

— Conheces a família?

— Não.

— E… O tenente investiga casos assim?

— Só se o médico forense não achar que foi um suicídio.

— E como é que o médico forense pode sabê-lo?

— A verdade é que não sei. Tens de perguntar ao Peter quando voltar.

— Quando voltará?

— Em algum momento entre agora e o amanhecer. Queres ir ao supermercado comprar alguma coisa para o jantar?

Os olhos de Gabe iluminaram-se.

— Posso conduzir?

— Podes, sim. Já que vamos lá, podíamos comprar uma sandes para o inspetor. Se não lhe levar comida, não come.

Gabe pousou o jornal.

— Posso tomar banho primeiro? Estou um pouco suado.

— Claro.

Gabe sabia que Rina continuava a avaliá-lo. Ao contrário do pai, ele não era um mentiroso hábil.

— Preocupas-te demasiado — observou. — Estou bem.

— Acredito em ti. — Rina acariciou-lhe o cabelo, húmido pelo suor. — Vai tomar banho. São quase sete e estou cheia de fome.

— A quem o dizes… — Gabe sorriu para si. Acabara de usar uma das expressões favoritas do inspetor-coordenador. Estava há quase um ano com os Decker e certas coisas tinham começado a contagiá-lo. Apercebeu-se dos rugidos da fome. O seu estômago tivera de se acalmar para o cérebro receber a mensagem de que não comia desde o pequeno-almoço e estava cheio de fome.

Os nervos não lhe tiravam o apetite, mas as pistolas afetavam o seu sistema digestivo.

Não como o pai.

Não havia uma arma de fogo de que Chris Donatti não gostasse.

Capítulo 2

 

Desde que o caso Hammerling aparecera no programa de televisão Fugitive, Decker não fizera outra coisa senão receber chamadas e quase todas levavam a becos sem saída. Mesmo assim, tinha por costume seguir qualquer pista, por muito absurda que pudesse ser. Um assassino em série andava à solta e não podiam ignorar nada. A pista atual procedia do deserto do Novo México, numa pequena vila situada entre Roswell — conhecida pelos seus avistamentos de ovnis — e Carlsbad, conhecida pela sua rede de grutas subterrâneas. Um lugar no meio do nada era sempre uma boa opção para se esconder. Além disso, essa região era a caminho da Ciudad Juárez, no México, onde, segundo algumas estimativas, se tinham cometido mais de vinte mil assassinatos na década passada. A maioria das vítimas participava em guerras de drogas. Mas também havia uma ampla minoria de assassinatos de mulheres jovens, possivelmente cerca de cinco mil, chamados feminicídios, cujas vítimas iam desde os doze aos vinte e cinco anos e, aparentemente, não tinham relação umas com as outras. A afeição dos mexicanos pela violência seria uma cobertura muito conveniente para alguém como Garth Hammerling, se conseguisse não acabar morto também.

Decker passou os dedos pelo cabelo, que conservava alguns reflexos vermelhos entre o cinzento e o branco. Hannah dizia que os reflexos pareciam muito punk. Sorriu ao pensar na filha mais nova. Estava a passar o ano em Israel e, depois daquilo, começaria a universidade em Barnard. Os seus filhos iam desde os trinta e tal anos até aos dezoito e ele ainda não experimentara a síndrome do ninho vazio, graças a duas pessoas com muitos problemas que, sem se aperceber, tinham pedido ajuda a Rina e a ele para criar o seu filho. Mas Gabriel era um bom miúdo. Não era um estorvo, embora fosse uma presença.

Atualmente, Rina estava a ensinar o rapaz, que tinha quinze anos, a conduzir.

«Pensava que já tinha deixado isto para trás», comentara ela. «Fazemos planos e Deus ri-se de nós.»

A boa notícia era que os netos, Aaron e Akiva, filhos da filha mais velha, Cindy, tinham quase três meses. Tinham-se adiantado três semanas e nasceram com dois quilos, seiscentos e vinte e três gramas e dois quilos, setecentos e cinquenta gramas, respetivamente. Para o fim da gravidez, Cindy engordara quase vinte e sete quilos. Mas, sendo atlética e fazendo exercício quase todos os dias, perdera esses quilos e mais. Agora, estava de baixa por maternidade no seu trabalho de inspetora no distrito de Hollywood. Tencionava regressar assim que encontrasse uma boa ama. Enquanto isso, Rina e a ex-mulher, Jan, encarregavam-se deles com muito prazer. Os bebés davam muito mais trabalho do que Gabe.

Decker alisou o bigode enquanto estudava a mensagem telefónica.

A pista fora proporcionada pela Polícia do estado do Novo México. Era a quarta vez que viam Garth Hammerling no Novo México e Decker começava a pensar que talvez tivesse planos. Marcou o código da área 505 e, depois de uma série de esperas e desvios, passaram a chamada para a CIS — a Secção de Investigações Criminais — na Divisão 4. O investigador encarregado daquele caso chamava-se Romulus Poe.

— Conheço o tipo que ligou para o programa — disse Poe a Decker. — Tem um hotel em Indian Springs localizado a cerca de sessenta e cinco quilómetros a sul de Roswell. O tipo é o que podíamos chamar uma personagem indígena. Vê e ouve coisas que escapam aos simples mortais. Mas isso não significa que esteja completamente louco. Eu estou aqui há doze anos. Antes disso, passei dez anos nos Homicídios no centro de Las Vegas. Conheci muitas pessoas estranhas. O deserto não é um lugar para covardes.

— Como se chama o tipo? — perguntou Decker.

— Elmo Turret.

— Qual é a sua história?

— Diz que viu um homem que se parecia com o da fotografia de Hammerling que tiraram no Fugitive. O Elmo diz que o viu há alguns dias a cerca de quinze quilómetros do hotel dele. Eu estou a acabar uma rusga da brigada antidroga. Passei a tarde numa plantação de marijuana. Assim que acabar com os donos do terreno, passarei pela zona com a minha mota e verei se encontro alguma veracidade na história.

— Ligue-me de qualquer forma. É o quarto aviso que recebo do Novo México.

— Não me surpreende. Alguma vez lá esteve?

— Só em Santa Fé.

— Isso é outro país, civilizado, na sua maior parte. Mas aqui… Bom, o que posso dizer? Isto é o Oeste Selvagem.

 

 

A papelada demorou mais uma hora e, às sete e meia da tarde, Decker estava prestes a ir para casa quando a sua inspetora-chefe favorita, a sargento Marge Dunn, bateu à ombreira da porta aberta. Media cerca de um metro e setenta e sete, tinha os ombros largos e o corpo bem definido. Vestia-se para o inverno em Los Angeles, com umas calças castanhas e uma camisola de caxemira de cor torrada. O cabelo loiro — mais loiro com cada ano que passava —, estava apanhado numa trança.

— Senta-te — convidou Decker.

— Tenho uma mulher lá fora que quer falar contigo — avisou Marge. — De facto, queria falar com o capitão Strapp, mas, como já se foi embora, conformou-se com o próximo da lista.

— Quem é?

— Chama-se Wendy Hesse e disse-me que são assuntos pessoais. Em vez de insistir, pensei que seria mais fácil deixá-la falar contigo.

Decker olhou para o relógio.

— Claro, manda-a entrar enquanto vou buscar uma chávena de café.

Quando regressou, Marge já estava a fazer com que a mulher misteriosa entrasse. A pele dela tinha um tom acinzentado e pouco saudável e os olhos azuis, embora secos naquele momento, pareciam ter chorado muito. Tinha o cabelo cortado à tigela, de cor castanha-escura e com as raízes brancas. Era uma mulher de compleição larga e devia ter quarenta e muitos anos. Usava um fato de treino preto e ténis.

— Tenente Decker — começou Marge —, esta é a senhora Hesse.

Decker pousou a chávena de café na mesa.

— Quer alguma coisa para beber?

A mulher abanou a cabeça sem levantar o olhar do seu colo e murmurou alguma coisa.

— Desculpe? — perguntou Decker.

Então, levantou a cabeça de repente.

— Não… Obrigada.

— Como posso ajudá-la?

Wendy Hesse olhou para Marge, que disse:

— Vou buscar café. Tem a certeza de que não quer um pouco de água, senhora Hesse?

A mulher rejeitou a segunda oferta. Quando Marge se foi embora, Decker inquiriu:

— Como posso ajudá-la, senhora Hesse?

— Tenho de falar com a polícia. — Cruzou as mãos, uma por cima da outra, e olhou para o colo. — Não sei por onde começar.

— Simplesmente, diga-me o que tem em mente — encorajou-a Decker.

— O meu filho… — os olhos humedeceram. — Dizem que se… que se suicidou. Mas eu… não acredito.

Decker observou-a num contexto diferente.

— É a mãe do Gregory Hesse.

Ela assentiu e as lágrimas começaram a cair-lhe pelas faces.

— Lamento muito, senhora Hesse — ofereceu-lhe um lenço. — Não consigo imaginar como se sente agora. — Quando a mulher começou a soluçar abertamente, Decker levantou-se e pôs-lhe uma mão no ombro. — Deixe-me trazer-lhe um copo de água.

— Talvez seja uma boa ideia — acedeu, assentindo.

Decker encontrou-se com Marge junto da cafeteira.

— É a mãe do Gregory Hesse, o adolescente do jornal que dizem que se suicidou. — Marge ficou com os olhos esbugalhados. — Há alguém dos Homicídios que tenha estado na cena ontem?

— Eu estava no tribunal — redarguiu Marge. Depois, fez uma pausa. — O Oliver estava lá.

— Falou-te disso?

— Na verdade, não. Ficou deprimido. Notava-se na cara. Mas não disse nada sobre a morte parecer suspeita.

Decker encheu um copo de água.

— A senhora Hesse tem as suas dúvidas sobre o suicídio. Importas-te de ficar? Quero que mais alguém a ouça.

— É claro.

Ambos regressaram ao seu escritório.

— Pedi ajuda à sargento Dunn — disse Decker à senhora Hesse. — Trabalha com o Scott Oliver, que esteve em sua casa ontem à tarde.

— Lamento muito a sua perda, senhora Hesse — replicou Marge.

A mulher voltou a chorar.

— Havia… havia muitos polícias na casa — murmurou.

— O inspetor Oliver estava à paisana. Não me lembro do que vestia ontem. Tem cinquenta e…

— Sim — confirmou a mulher, limpando os olhos. — Lembro-me dele. É espantoso… Está tudo impreciso… como num pesadelo.

Decker assentiu.

— Continuo a pensar que… vou acordar — mordeu o lábio. — Está a matar-me. — As lágrimas caíam novamente, mais depressa do que ela conseguia limpá-las. — O que podem fazer por mim é descobrir o que aconteceu realmente.

— Está bem. — Decker fez uma pausa. — Diga-me, em que é que não acredita na morte do seu filho?

As lágrimas caíam sobre as suas mãos cruzadas.

— O Gregory não disparou contra si próprio. Nunca usou uma pistola! Odiava-as. Toda a nossa família odeia a violência em todas as suas formas!

Decker tirou um bloco.

— Fale-me do seu rapaz.

— Não era um suicida. Nem sequer estava deprimido. O Gregory tinha amigos e era um bom estudante. Tinha muitos passatempos. Nunca, nem remotamente, insinuou alguma coisa sobre o suicídio.

— Sentiu alguma mudança nele nos últimos meses?

— Nada.

— Talvez estivesse mal-humorado? — sugeriu Marge.

— Não! — exclamou a mulher, com determinação.

— Dormia mais? — perguntou Decker. — Comia mais? Comia menos?

O suspiro de Wendy denotava exasperação.

— Era o mesmo rapaz de sempre… pensativo… não falava muito. Mas isso não significa que estivesse deprimido, sabe?

— Claro que não — concordou Decker. — Lamento perguntar-lhe isto, senhora Hesse, mas alguma vez tomou drogas?

— Nunca!

— Fale-me um pouco dos passatempos do Gregory. Alguma atividade extracurricular?

A mulher pareceu perturbada.

— Eh… Sei que tentou entrar na equipa de debate — fez-se silêncio. — Fê-lo muito bem. Disseram-lhe para voltar no ano que vem, quando houvesse vaga.

O que significava que não conseguira entrar.

— O que mais? — perguntou Decker.

— Estava no clube de matemática. Tinha muito jeito.

— O que fazia aos fins de semana?

— Estava com os amigos. Ia ao cinema. Estudava. Para além das disciplinas do secundário, estudava num curso de preparação universitária.

— Fale-me dos amigos dele.

A mulher cruzou os braços por cima do peito generoso.

— Talvez o Gregory não fosse dos rapazes mais “populares”. — Fez o símbolo das aspas com os dedos ao dizer populares. — Mas, certamente, não era um marginalizado.

— Tenho a certeza de que não. E os amigos?

— Os seus amigos eram… Dava-se bem com todos.

— Pode ser mais específica? Tinha algum melhor amigo?

— O Joey Reinhart. Eram amigos desde a primária.

— Mais algum? — perguntou Marge.

— Tinha amigos — repetia a senhora Hesse, incessantemente.

Decker focou o assunto de outro modo.

— Se o Gregory tivesse de encaixar numa categoria dentro do secundário, em qual seria?

— O que quer dizer?

— Mencionou os populares. Há outros grupos: os desportistas, os skaters, os deslocados, os estudiosos, os rebeldes, os cérebros, os filósofos, os da moda, os góticos, os vampiros, os marginais, os artistas… — Decker encolheu os ombros.

A mulher cerrou os dentes.

— O Gregory tinha todo o tipo de amigos — declarou, finalmente. — Alguns tinham problemas.

— Que tipo de problemas?

— Sabe como é…

— Para nós, problemas costumam ser sexo, drogas ou álcool — explicou Marge.

— Não, isso não. — Wendy retorceu as mãos. — Alguns dos amigos dele demoraram um pouco a amadurecer. Um deles, o Kevin Stanger… Metiam-se tanto com ele que teve de ir para uma escola privada do outro lado da colina.

— Perseguiam-no? — perguntou Decker. — Com perseguição refiro-me a agressões físicas.

— A única coisa que sei é que se mudou para outra escola.

— Quando aconteceu isso? — perguntou Marge.

— Há cerca de seis meses. — A mulher olhou para baixo. — Mas o Gregory não era assim. Não, senhor. Se se tivessem metido com o Gregory, eu teria descoberto. Faria alguma coisa a respeito disso. Garanto-lhe.

Talvez tivesse sido por isso que Gregory não lhe dissera.

— Alguma vez chegou a casa com golpes ou hematomas que não conseguiu explicar? — perguntou Decker.

— Não! Porque não acredita em mim?

— Acredito em si — contradisse Decker. — Mas tenho de lhe fazer certas perguntas, senhora Hesse. Quer uma investigação competente, não quer?

A mulher ficou calada. Depois, disse:

— Pode chamar-me Wendy.

— Como queira — concedeu Decker.

— Alguma namorada? — perguntou Marge.

— Que eu saiba, não.

— Saía aos fins de semana?

— Normalmente, os amigos e ele iam para casa uns dos outros. O Joey é o único com idade para conduzir. — Os olhos de Wendy humedeceram. — O meu filho nunca o fará — começou a soluçar. Decker e Marge esperaram que a pobre mulher recuperasse a voz. — Algumas vezes… — limpou os olhos —, quando fui buscá-lo… vi algumas raparigas — voltou a enxugar as lágrimas. — Perguntei ao Gregory por elas. Disse-me que eram amigas da Tina.

— Quem é a Tina? — perguntou Marge.

— Oh… perdão. A Tina é a irmã mais nova do Joey. O Frank, o meu filho mais novo, e ela estão no mesmo ano.

— O Joey e o Gregory estavam na mesma escola?

— Bell e Wakefield. Em Lauffner Ranch.

— Conheço-a — replicou Decker.

A Bell e Wakefield era uma escola preparatória exclusiva de North Valley, com oito hectares de terreno, um campo de futebol moderno, campo de jogos de basquetebol interior, estúdio de cinema e laboratório informático digno da NASA. Ganhava prémios em desportos, arte dramática e ciências, nessa ordem. Muitos atletas profissionais e atores viviam na zona e os seus filhos costumavam estudar nessa escola.

— Cerca de mil e quinhentos estudantes?

— Não sei o número exato, mas é uma escola grande — concordou Wendy. — Têm muito espaço para encontrar o seu lugar especial.

«E, se não encontrarmos o nosso lugar, temos muito espaço para nos perdermos», pensou Decker.

— O Joey é um pouco palerma — replicou Wendy. — Mede cerca de um metro e setenta e pesa quarenta e cinco quilos. Usa uns óculos grandes e tem orelhas de abano. Não digo isto só para ser má, mas só para vos dizer que há muitos outros rapazes que poderiam ter perseguido antes do Gregory.

— Tem uma fotografia dele? — perguntou Decker.

Wendy rebuscou na mala e tirou a fotografia da primária. Nela, aparecia um menino com cara infantil, olhos azuis e bochechas rosadas. Faltavam anos para a puberdade e o secundário nunca tratava bem esses rapazes.

— Posso ficar com ela? — perguntou Decker.

Wendy assentiu.

Ele fechou o bloco.

— O que queres que faça pelo teu filho, Wendy? — perguntou, tratando-a por tu.

— Descobrir o que se passou realmente. — Tinha lágrimas nos olhos.

— A médica forense declarou que a morte do teu filho foi um suicídio — recordou-lhe Decker.

Wendy estava decidida.

— Não me importo com o que a médica forense disse, o meu filho não se suicidou.

— Pode ter sido um disparo acidental?

— Não — insistiu Wendy. — O Gregory odiava pistolas.

— E como acha que morreu? — perguntou Marge.

Wendy olhou para os inspetores enquanto retorcia as mãos. Não respondeu à pergunta.

— Se não foi uma morte acidental causada por ele próprio e se não foi um suicídio intencionado, isso deixa-nos com o homicídio, acidental ou intencionado.

Wendy mordeu o lábio e assentiu.

— Achas que alguém assassinou o teu filho?

Wendy demorou vários segundos a conseguir falar.

— Sim.

Decker tentou ser o mais amável possível.

— Porquê?

— Porque sei que não se suicidou.

— Portanto, achas que a médica forense ignorou alguma coisa ou… — Wendy ficou calada. — Não me importo de ir à escola e de falar com alguns amigos e colegas do Gregory. Mas a médica forense não mudará a sua declaração, a não ser que encontremos algo extraordinário. Algo que contradiga diretamente o suicídio. Normalmente, é o médico forense que vem ter connosco porque suspeita que houve algo estranho.

— Mesmo que fosse… o que vocês dizem. — Wendy limpou os olhos com os dedos. — Não tenho… ideia… do que aconteceu — mais lágrimas. — Se o fez… não sei porquê. Não tenho ideia! Não podia ser assim tão tola.

— Não tem nada a ver com a inteligência.

— Tem filhos, senhor?

— Sim.

— E a inspetora? — Virou-se para Marge.

— Tenho uma filha.

— E o que pensariam se chegassem a casa um dia e descobrissem que o vosso filho se suicidou?

— Não sei — admitiu Decker.

— Não consigo imaginar — acrescentou Marge, com lágrimas nos olhos.

— Então, digam-me uma coisa — continuou Wendy. — Como se sentiriam se soubessem que não havia nenhuma razão para o vosso filho fazer isso? Não estava deprimido, não estava de mau humor, não tomava drogas, não bebia, não era um marginalizado, tinha amigos e nunca tinha empunhado uma pistola. Nem sequer sei onde arranjou a pistola! — começou a soluçar. — E ninguém me diz nada!

Decker deixou que chorasse e passou-lhe a caixa de lenços de papel.

— O que quer que façamos, senhora Hesse? — perguntou Marge.

— Wen… dy — pediu ela, entre soluços. — Descubram o que aconteceu — estava a suplicar com o olhar. — Sei que, provavelmente, isto não é um assunto policial, mas não sei a quem pedir ajuda.

Silêncio.

— Contrato um detetive privado? Pelo menos, ele poderia descobrir onde o Gregory arranjou a pistola.

— Onde está a pistola? — perguntou Decker.

— A polícia levou-a — replicou Wendy.

— Então, deve estar no armário das provas — concluiu Marge. — Também está nos arquivos.

— Vamos procurá-la e descobrir de onde saiu — decidiu Decker e virou-se para Wendy. — Deixa-me começar com a pistola e trabalharemos a partir daí.

— Obrigada! — Wendy começou a chorar novamente. — Obrigada por acreditar em mim… ou, pelo menos, por pensar no que disse.

— Estamos aqui para ajudar — afirmou Marge.

Decker assentiu com a cabeça. Provavelmente, a mulher estava em fase de negação. Mas, às vezes, mesmo nessas circunstâncias, os pais conheciam melhor os filhos do que ninguém.

Capítulo 3

 

Sentado no sofá da sala, Decker abriu uma lata de salsaparrilha e desfrutou da presença da esposa e do gosto da carne curada.

— Obrigado por comprares o jantar.

— Se soubesse que estavas prestes a chegar, teríamos esperado no centro comercial.

— É melhor assim — deu a mão a Rina. Tomara banho antes de jantar e trocara o fato pelo fato de treino. — Onde está o rapaz?

— A praticar.

— Como está?

— Parece que está bem. Sabias que a Terry entrou em contacto com ele?

— Não, mas estava destinado a acontecer mais cedo ou mais tarde. Quando foi?

— Há uma semana. — Rina resumiu a conversa. — Obviamente, afetou-o. Esta noite, durante o jantar, parecia ausente. Cada vez que se sente incomodado, começa a falar dos próximos concursos. Paradoxalmente, os concursos acalmam-no. Alugar um piano é muito mais barato do que pagar uma terapia.

O piano estava na garagem, o único lugar onde tinham espaço suficiente. Gabe partilhava o seu estúdio de música com o Porsche de Decker, o seu banco de trabalho, as suas ferramentas e a zona de jardinagem de Rina. Tinham insonorizado o lugar porque o rapaz praticava a horas muito estranhas. Mas, dado que estudava em casa e praticamente acabara o secundário, deixavam-no ter o seu próprio ritmo. Nem sequer tinha dezasseis anos e já entrara na Juilliard e em Harvard. Mesmo que eles fossem os seus tutores legais — coisa que não eram —, não havia nenhuma educação para dar. Chegado a esse ponto, só lhe davam comida, teto e um pouco de companhia.

— Conta-me como foi o teu dia — pediu Rina.

— Bastante rotineiro, exceto na última meia hora. — Decker resumiu a conversa com Wendy Hesse.

— Pobre mulher!

— Deve estar a sofrer muito se prefere o homicídio ao suicídio.

— Foi isso que a médica forense declarou? Suicídio?

Decker assentiu.

— Então… simplesmente, não quer acreditar.

— Certo. Normalmente, os sinais estão presentes, mas os pais olham para o outro lado. Sinceramente, acho que a Wendy está perplexa. — Decker alisou o bigode. — Lembras-te de quando nos conhecemos? Insistias em enviar as crianças para uma escola judia e eu pensei que estavas louca. A julgar pelo que pagámos pela matrícula, podíamos tê-los enviado para a Lawrence ou a Bell e Wakefield, não para uma escola num edifício em ruínas com um só andar que não tem biblioteca nem sala de computadores.

— Muitas pessoas teriam concordado — redarguiu Rina, com um sorriso.

— Mas tenho de dizer que quase todos os rapazes que conhecemos são simpáticos. Certo, eu vejo o pior das escolas secundárias, mas não acho que esses lugares promovam atitudes saudáveis. Por outro lado, tu fizeste o correto.

— A escola, embora desorganizada e sem muitos recursos, é um lugar acolhedor. Obrigado por mo dizeres.

Decker recostou-se no sofá.

— Falaste com algum dos miúdos hoje?

— Claro que sim. Os miúdos estão ocupados como de costume. Estive no Skype com a Hannah esta manhã. Ia para a cama. Provavelmente, levanta-se dentro de algumas horas.

— Sinto a falta dela. — Decker parecia triste. — Talvez ligue à Cindy. Para ver o que está a fazer.

Rina sorriu.

— Os netos são sempre o antídoto para tudo.

— Queres ir visitá-los?

— Devias perguntar à Cindy primeiro.

— Sim, suponho que tenha de o fazer. — Decker fez uma chamada e, quando desligou, sorria. — Convidou-me para ir.

— Então, vamos.

— E o Gabe?

— Vou dizer-lhe que vamos — redarguiu Rina. — Gosta da Cindy e do Koby, mas tenho a impressão de que dirá que não. Hoje, estava estranho. Talvez tenha a ver com a mãe. Em qualquer caso, quando fica assim, retrai-se.

Decker refletiu sobre aquelas palavras.

— Devia falar com ele?

— Vai dizer-te que está tudo bem.

— Não quero que se sinta como um estranho — replicou Decker. — Mas eu não faço grande coisa para o ajudar a sentir-se como um membro da família. Ia sentir-me muito culpado se chegasse a casa um dia e o encontrasse como o Gregory Hesse.

Rina assentiu.

— Acho que a música é e sempre foi a sua salvação.

— E isso é suficiente?

— Não sei. Só posso dizer-te que tem uma vida normal. Apanha o autocarro duas vezes por semana para ir às aulas na universidade, preencheu todas as candidaturas para a universidade sozinho, embora me tenha oferecido para o ajudar, foi sozinho às entrevistas e audições, embora me tenha oferecido para ir com ele, e reservou os seus voos e os seus quartos de hotel, embora me tenha oferecido para o fazer. Já o admitiram em Harvard e na Juilliard. Parece-me que não estaria a planear o seu futuro se pensasse que não o tem. — Rina fez uma pausa. — Se queres fazer alguma coisa por ele, leva-o a conduzir. Isso entusiasma-o.

— Está bem. Levo-o no domingo.

— Adora o teu Porsche.

— Não vamos abusar com os detalhes. Uma coisa é ser emocionalmente sensível. O Porsche é outra coisa.

 

 

O Coffee Bean era a cerca de três quilómetros do Starbucks onde Gabe encontrara Dylan e os seus amigos e, com sorte, seria fora da zona deles. Embora também não esperasse encontrar mais ninguém às seis da manhã. O estabelecimento estava vazio e isso parecia-lhe bem. Escolhera uma poltrona de couro na parte de trás, depois de comprar um bagel e um café grande, para além do New York Times. Quando vivia na Costa Este, costumava ler o Post. Era-lhe estranho ler um jornal intelectual quando a única coisa que desejava fazer era ler dados curiosos ou a revista Page Six para saber quem ia para a cama com quem.

O café ficava a cerca de quinze minutos da paragem de autocarro para a Universidade da Califórnia do Sul. Às terças e quintas-feiras tinha aulas com Nicholas Mark e, embora só tivesse aulas às onze, decidira começar o dia cedo. Dormira mal na noite anterior. Não parava de ouvir a voz da mãe na sua mente…

Untou o creme de queijo no bagel e começou a ler as notícias, que eram ainda mais deprimentes do que a sua vida atual. Alguns minutos mais tarde, sentiu a presença de uns olhos e levantou o olhar.

Uma rapariga com o uniforme da escola judia. Não era de estranhar, dado que o estabelecimento era a dois minutos da escola. Devia ter amortecedores nos pés, pois não ouvira nada até estar mesmo à frente dele, agarrada à mochila como se fosse uma armadura.

— Olá! — cumprimentou, com um sorriso tímido.

— Olá! — cumprimentou ele. Ao olhar melhor para ela, apercebeu-se de que, provavelmente, era mais velha do que pensara ao princípio. Tinha a pele torrada, o queixo pequeno e pontiagudo, os lábios carnudos e os olhos grandes e pretos, por baixo de umas sobrancelhas pretas cuidadosamente arqueadas e pintadas. O seu cabelo também era preto e muito comprido, apanhado numa trança. Era bonita, embora o seu corpo não parecesse grande coisa — duas bolas de gelado a modo de seios e nenhuma curva à vista. — Precisas de alguma coisa?

— Importas-te que me sente?

Ele era o único cliente do estabelecimento. Encolheu os ombros.

— Não, senta-te.

Mas ela não se sentou.

— Ouvi-te tocar no ano passado — esclareceu. — A minha irmã mais velha estava na turma da Hannah. Foste… — colou a mochila ao peito. — Fantástico!

— Muito obrigado — agradeceu Gabe.

— Quero dizer que foste…

Não acabou a frase. Fez-se silêncio. Um silêncio incómodo.

— Obrigado. Agradeço-te. — Gabe levantou o seu café, bebeu um gole e voltou a olhar para o jornal.

— Gostas de ópera? — perguntou ela, de repente.

Gabe pousou o jornal.

— De facto, gosto.

— A sério? — A rapariga esbugalhou os olhos. — Ena, que bom. Então, pelo menos, não se perderão. — Baixou a mochila e começou a rebuscar nela até encontrar o que procurava: um envelope. Ofereceu-o a Gabe. — Aqui tens.

Gabe ficou a olhar para ela durante uns segundos, depois, aceitou o envelope e abriu-o. Bilhetes para La Traviata naquele domingo no Centro de Música. Primeira fila no camarote.

— Que bons lugares…

— Eu sei. Custaram-me muito dinheiro. A Alyssa Danielli faz de Violetta. É maravilhosa, portanto, de certeza que será ótimo.

— E por que não vais?

— Ia com a minha irmã, mas abandonou-me. Eu não consigo competir com uma festa na piscina e o atraente Michael Shoomer.

— E porque não procuras outra pessoa com quem ir?

— Ninguém da minha idade vai querer passar a tarde de domingo na ópera.

— E a tua mãe?

— Está ocupada. De todos os modos, não lhe interessa. A minha irmã só acedeu a ir porque lhe disse que lhe limparia o quarto. Portanto, suponho que já não tenha de o fazer. — Parecia magoada. — Podes ficar com eles. Vai com a tua namorada.

— Não tenho namorada.

— Bom, leva um amigo.

— Não tenho amigos. Mas… sem dúvida, usarei um dos bilhetes se tencionas deitá-los fora. Tens a certeza?

— Absoluta.

— Então, muito obrigado — devolveu-lhe o envelope com apenas um bilhete.

— De nada. — A rapariga suspirou com força.

Gabe tentou sorrir forçadamente.

— Queres ir comigo?

A rapariga entusiasmou-se.

— Tens carro?

— Não. Só tenho quinze anos. Mas podemos ir de autocarro.

— De autocarro? — perguntou a rapariga, com um ar de horror.

— Sim, de autocarro. É assim que as pessoas que não têm acesso a um carro se deslocam. — A pele da rapariga pareceu-lhe mais escura e Gabe apontou para uma cadeira. — Porque não te sentas? Já começa a doer-me o pescoço de olhar para ti… Embora não muito.

— Eu sei. Sou uma anã. — A rapariga sentou-se e olhou por cima do seu ombro, depois falou em voz baixa, como se estivessem a conspirar. — Sabes chegar ao Centro de Música de autocarro?

— É verdade.

— Onde se apanha o autocarro?

— Numa paragem de autocarro.

Ela mordeu o lábio.

— Deves pensar que sou idiota.

— Não, mas, provavelmente, és uma mimada que vai de boleia para todo o lado.

Em vez de se ofender, a rapariga assentiu.

— Levam-me para todo o lado, menos para onde realmente desejo ir — suspirou. — Adoro a Alyssa Danielli. A voz dela é tão… pura.

Gabe recostou-se na poltrona e observou-a com franqueza. Admirava a paixão em qualquer forma, mas a música clássica era algo com que se identificava.

— Se tens tanta vontade de ir à ópera, vai.

— Não é assim tão fácil.

— Porquê?

— Tu não entendes a cultura persa.

— Há algo nos genes persas que faz com que não gostem da ópera?

— O meu pai quer que seja médica.

— Tenho a certeza de que há médicos que adoram ópera — deu uma trinca ao bagel. — Queres café ou alguma coisa?

— Vou eu — afastou-se, mas deixou a mochila. Poucos minutos mais tarde, regressou com alguma coisa com espuma. Uma camada de suor cobria-lhe a testa. — As pessoas estão a começar a chegar.

— Ainda bem. Assim o lugar não terá de fechar.

— Refiro-me a ser… — Olhou para o relógio e bebeu um gole de café. — É perigoso apanhar o autocarro?

— Eu não o faria de madrugada, mas isto é uma matiné. — Gabe esfregou o pescoço. — Se vais continuar a falar comigo, podes sentar-te, por favor?

A rapariga sentou-se.

— Olha… — começou ele. — E se te der as indicações para ir de autocarro? Se estiveres na paragem do autocarro, iremos juntos. Se não, posso comprar-te um CD e escrever-te uma crítica.

Ela suspirou.

— Talvez possamos ir de táxi.

— Um táxi custa vinte vezes mais.

— Eu pago.

Gabe ficou a olhar para ela. Quem era?

— Não digo que sou pobre. Eu posso pagar o táxi se decidires vir. Caso contrário, irei de autocarro.

— O que te parece isto? — perguntou a rapariga. — Tu pagas o táxi se eu for e, se não for, devolvo-te o dinheiro.

Gabe abanou a cabeça.

— Isto é cada vez mais complicado.

— Por favor — suplicou ela.

— Está bem. — Gabe revirou os olhos. — Devolves-me o dinheiro do táxi se não apareceres… O que não faz sentido porque tenho de ir buscar-te de todos os modos e, nessa altura, já saberás se vens ou não.

Ela esbugalhou ainda mais os olhos.

— Não podes ir buscar-me a casa. Encontramo-nos a alguns quarteirões de lá.

— Sim… — Gabe entendeu finalmente. — Vais às escondidas dos teus pais.

— Mais ou menos.

— Meu Deus, também não é como se fosses a uma rave; é uma maldita ópera. — Ao ver que ela não dizia nada, acrescentou: — Não é apenas a ópera. É ir comigo à ópera. Porque não sou judeu.

Ela ficou a olhar para ele.

— Não és judeu?

— Não. Sou católico.

— Oh, meu Deus! O meu pai matava-me só por sair com um rapaz branco. — Inclinou-se para a frente e falou em voz baixa. — O que fazias numa escola judia se não és judeu?

— É uma longa história — fez uma pausa. — Isto não é boa ideia. Não quero ser responsável por te meter numa confusão. Queres que te devolva o bilhete?

— Não, claro que não. Se não o usares, será um desperdício — voltou a suspirar. — Quero dizer, é apenas uma ópera, não é?

— Sim, é apenas uma ópera. Não é um encontro. — Gabe voltou a estudar o seu rosto. — Quantos anos tens?

— Catorze.

— Parece que tens dez.

— Muito obrigada — troçou ela. Obviamente, era algo que lhe diziam muitas vezes.

— Pareces jovem, mas és muito bonita — elogiou Gabe, para a envergonhar, mas falava a sério. — Isto é o que vou fazer. Vou dar-te o meu número de telemóvel e podes ligar-me ou mandar mensagem se quiseres ir — esperou um momento. — Tens telemóvel, não tens?

— É claro.

— Portanto, os persas podem ter telemóveis.

— Claro!

— Aponta o meu número de telemóvel. Sabes como me chamo?

— Gabriel Whitman.

— Excelente! — Deu o seu número à rapariga. — Agora, vou apontar o teu. Mas, para isso, preciso de saber o teu nome primeiro.

— Yasmine Nourmand. Pronunciado Jaz-miin - soletrou-o. — soletrou-o e, depois, deu-lhe o seu número.

— É um nome muito exótico. Como se chama a tua irmã mais velha?

— Tenho três irmãs mais velhas.

— A que estava na turma da Hannah.

— Essa é a Sage. As minhas outras irmãs são a Rosemary e a Daisy. Yasmine é jasmim em hebreu — olhou para o relógio. — Tenho de ir. As aulas começam às sete e meia.

— Lembro-me disso. O que fazias aqui tão cedo?

— Às vezes, venho cedo para ouvir os meus CD — tirou seis óperas: duas de Verdi, duas de Rossini e duas de Mozart. — Amo muito os meus pais. E as minhas irmãs. São maravilhosos e tudo isso. E também gosto do pop normal. Mas, às vezes, quando ouço a minha música, de que mais ninguém parece gostar, prefiro estar sozinha.

Os seus olhos pareciam distantes.

— O meu sonho é ver uma ópera ao vivo. E ouvir alguém tão bom como a Alyssa Danielli. — Levantou a mochila. — Obrigada por te ofereceres para ir comigo.

— Foi um prazer.

— E obrigada por não te rires de mim.

— Fi-lo um pouco.

— Sim, é verdade. — Despediu-se com a mão e foi-se embora.

Ele devolveu a atenção ao jornal, sabendo que aquilo era um erro. Mas, ao falar com ela, apercebera-se de como estava sozinho.

Yasmine despertara o leão adormecido.

Raparigas.