hc1301.jpg

 

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

harpercollinsiberica.com

 

O enforcado

Título original: Hangman

© 2010, Plot Line, Inc.

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Richard Aquan

Imagens de capa: Andreas Kindler/Johner/Glasshouse images

 

ISBN: 978-84-9139-112-8

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Capítulo 40

Capítulo 41

Capítulo 42

Capítulo 43

Capítulo 44

Capítulo 45

Capítulo 46

Capítulo 47

Capítulo 48

Capítulo 49

 

 

Para Jonathan, um homem completo de A a Z

E para Lila e Oscar, beijos e abraços

Capítulo 1

 

Nas fotografias, aparecia inchada, magoada e com hematomas; um lábio intumescido, os olhos negros e o rosto vermelho, avolumado. Decker achava quase impossível associar aquelas imagens à bonita mulher que estava sentada à sua frente. Terry mudara naqueles quinze anos. A linda rapariga de dezasseis anos transformara-se numa mulher espantosa, elegante. A idade suavizara e arredondara os seus traços com a delicadeza frágil de um camafeu vitoriano. Olhou alternadamente para a fotografia e para a cara dela. Arqueou uma sobrancelha.

— É um desastre, não é? — perguntou ela.

— O seu marido deu-lhe uma boa sova — se Decker semicerrasse os olhos, ao observar a cara dela, ainda conseguia ver os vestígios da agressão e um matiz esverdeado em algumas partes. — E estas fotografias são de há seis semanas?

— Mais ou menos — mudou de posição no sofá. — O corpo é espantoso. Outrora, não parava de presenciar milagres.

Sendo médica, Terry saberia essa informação em primeira mão. O facto de ter acabado o curso de medicina, de ter educado uma criança enquanto estava casada com aquele maníaco, mostrava a força do seu caráter. Era difícil vê-la assim, tão abatida.

— Tem a certeza de que quer passar por isso? Encontrar-se com ele aqui, em Los Angeles?

— Adiei o máximo que pude — disse Terry. — Na verdade, não tem sentido esconder-me. Se o Chris quiser encontrar-me, fá-lo-á. E não estou preocupada comigo, mas com o Gabe. Se se zangar o suficiente, pode magoá-lo. Preciso que ele seja adulto, antes de tomar decisões sobre a minha vida, inspetor-coordenador.

— Quantos anos tem o Gabe?

— Cronologicamente, faltam cerca de quatro meses para fazer quinze anos. Psicologicamente, é um homem adulto.

Decker assentiu. Estavam sentados numa suíte elegante de um hotel de Bel Air, na Califórnia. O padrão cromático da divisão era num bege relaxante. Havia um bar com lava-loiça à entrada e uma bancada de mármore para preparar bebidas. Terry aninhara-se no sofá, à frente da lareira de pedra. Estava sentada à sua esquerda, numa poltrona com vista para o jardim privado, coberto de fetos, palmeiras e flores; um oásis para a alma ferida.

— O que a faz pensar que durará até o Gabe fazer dezoito anos?

Terry pensou na resposta durante alguns segundos.

— Sabe como o meu marido é frio e calculista. É a primeira vez que me põe as mãos em cima.

— E o que aconteceu?

— Um mal-entendido — olhou para o teto, evitando o olhar de Decker. — Encontrou uns exames médicos e pensou que eu tinha abortado. Quando consegui fazer com que parasse de me bater e me ouvisse, percebeu que tinha lido mal o nome. Foi a minha meia-irmã que abortou.

— Confundiu o nome Melissa com Teresa.

— O nosso segundo nome é o mesmo. Eu sou Teresa Anne. Ela é Melissa Anne. É uma estupidez, mas o meu pai é estúpido. Continuo a usar o apelido McLaughlin, tal como a minha meia-irmã, porque é o que aparece em todos os meus diplomas e licenças. Ele leu mal o nome e perdeu a cabeça. Não é que goste muito de crianças, mas a ideia de eu ter destruído a sua descendência enfureceu-o. Ainda bem que não tinha uma pistola ao seu alcance — concluiu, encolhendo os ombros.

— Porque casou com ele, Terry?

— Ele queria que fosse oficial. Não podia dizer não, porque era ele que nos sustentava. Não poderia ter acabado o curso de medicina sem o dinheiro dele — fez uma pausa. — Normalmente, deixa-nos em paz, ao Gabe e a mim. Concentra-se no trabalho, no álcool, nas drogas ou noutras mulheres. O Gabe e eu aprendemos a evitá-lo. As nossas interações são neutras e às vezes até agradáveis. É generoso e sabe como ser encantador quando deseja alguma coisa. Dou-lhe o que deseja e corre tudo bem.

— Exceto, quando não é assim — Decker levantou as fotografias. — O que quer exatamente que eu faça, doutora?

— Acedi a vê-lo, inspetor-coordenador. Não a voltar para ele. Pelo menos, não imediatamente. Não sei como aceitará a notícia. Visto que não posso fugir dele, quero que aceite uma separação temporária. Não um divórcio, porque isso não acabaria bem, apenas que aceda a dar-me um pouco mais de tempo para estar sozinha.

— Quanto tempo?

— Trinta anos, talvez — Terry sorriu. — De facto, gostaria de voltar a instalar-me em Los Angeles, até o Gabe acabar o secundário. Encontrei uma casa para arrendar em Beverly Hills. Não só tenho de fazer com que Chris aceda à separação, como quero que pague tudo.

— E como vai fazer isso?

— Já vai ver! — sorriu. — Dominou-me, mas eu fiz o mesmo com ele.

— E, mesmo assim, sente que precisa de proteção.

— Estamos a falar de um animal selvagem. Pode acontecer qualquer coisa. É bom tomar precauções.

— Há homens mais jovens e fortes do que eu, homens que, provavelmente, a protegeriam melhor.

— Oh, por favor! Chris conseguiria vencer qualquer um deles. Consigo tem mais… Cuidado. Respeita-o.

— Deu-me um tiro.

— Se quisesse matá-lo, estaria morto.

— Eu sei — concordou Decker. — Queria demonstrar quem era o chefe — e soprou. — Mas, o mais importante é que o Chris gosta de usar armas. Ao dar-me um tiro, matou dois coelhos de uma cajadada só.

Terry baixou o olhar.

— Gabou-se de lhe ter pedido favores. É verdade?

Decker sorriu.

— Peço-lhe informações, de vez em quando. Usarei qualquer fonte que me possa ajudar a resolver um caso — observou a cara dela, a tez pálida, os olhos cor de avelã e o cabelo castanho, comprido. Via alguns cabelos brancos, o único indício de que a vida dela estava sujeita a pressão. Usava um vestido comprido, até aos tornozelos, largo e sem mangas – uma peça de seda com desenhos geométricos, em tons de cor de laranja, verde e amarelo. Os pés descalços apareciam por baixo da bainha. — Quando chegará à cidade?

— Disse-lhe para passar pelo hotel no domingo, ao meio-dia. Supus que essa hora seria conveniente para si.

— Onde estará o seu filho, quando tudo isso acontecer?

— Está na UCLA, numa das salas de ensaio. O Gabe tem telemóvel. Se precisar de mim, pode ligar-me. É muito independente. Não teve outro remédio senão sê-lo — o olhar dela parecia distante. — É tão bom rapaz… Ao contrário do pai. Tendo em conta a infância, já devia ter ido duas vezes para a reabilitação, pelo menos. Em vez disso, é tremendamente maduro. Preocupa-me. Dentro dele, há muitas coisas que ficaram por dizer. Merece algo melhor… — Levou as mãos à boca e pestanejou para conter as lágrimas. — Muito obrigada por me ajudar.

— Primeiro, espere até eu fazer alguma coisa, antes de me agradecer — Decker olhou para o relógio. Supostamente, devia estar em casa há meia hora. — Muito bem, Terry, virei no domingo. Mas tem de fazer isto à minha maneira. Tenho de pensar num plano, decidir como quero que o encontro tenha lugar. Em primeiro lugar, e o mais importante, terá de esperar no quarto até eu me certificar de que está tudo bem. Só então é que poderá sair.

— Parece-me bem.

— Além disso, terá de dizer ao Gabe que só pode vir para a casa quando lhe enviar uma mensagem a dizer que correu tudo bem. Não quero que apareça no meio de uma situação delicada.

— Parece razoável.

O quarto ficou em silêncio durante alguns segundos. Depois, Terry levantou-se.

— Muito obrigada, inspetor-coordenador. Espero que esteja satisfeito com os honorários.

— Muito satisfeito. É uma quantia muito generosa.

— É o lado positivo do Chris, é muito efusivo. Se lhe oferecesse menos, ficaria ofendido.

 

 

— Olha, se não queres que o faça, não o farei — disse Decker.

— Claro que não quero que o faças! — exclamou Rina. — Deu-te um tiro, pelo amor de Deus!

— Então, vou ligar-lhe e dizer-lhe que não.

— É um pouco tarde para isso, não te parece? — Rina levantou-se da mesa da sala de jantar e começou a arrumar as coisas do brunch; dois pratos e dois copos. Hannah já quase nunca fazia as refeições com eles. Começaria o seminário em Israel, no outono. Faltavam três meses para acabar o secundário e era como se não estivesse presente.

Decker seguiu a esposa até à cozinha.

— Diz-me o que queres — Rina abriu a torneira e ele acrescentou: — Eu lavo a loiça.

— Não, eu lavo.

— Melhor, porque não usas a máquina de lavar loiça?

— Para dois pratos?

Contando os copos, os talheres, as panelas e as frigideiras, era muito mais do que isso. Mas não a contrariou.

— Devia ter-te consultado antes de aceitar. Lamento muito.

— Não quero um pedido de desculpas. Estou preocupada com a tua segurança. É um assassino, Peter.

— Não vai matar-me.

— Não me dizes sempre que as situações domésticas são as mais perigosas, porque há muitas emoções envolvidas?

— São, se não estiver preparado.

— Não achas que a tua presença pode complicar tudo?

— Talvez. Mas, se ela não tiver ninguém, poderá ser pior.

— Pede-lhe para contratar outra pessoa. Porque tens de ser tu?

— Acha que será mais fácil apaziguar o Chris.

— «Apaziguar» é a palavra-chave — indicou Rina. — Esse homem é uma bomba! — Abanou a cabeça, enquanto lavava a loiça. Depois, entregou o primeiro prato a Decker, sem dizer nada.

— Obrigado pelo brunch. Os ovos Benedict com salmão estavam deliciosos.

— Todos os homens merecem ter uma última refeição.

— Não tem graça…

Rina deu-lhe outro prato.

— Se te acontecer alguma coisa, nunca te perdoarei.

— Entendido.

— Não me importo com o que acontece com ela. Tenho a certeza de que é uma boa mulher, mas meteu-se nessa confusão sozinha — Rina sentia a raiva a aumentar. — Porque tens de ser tu a salvá-la? Acho uma desfaçatez que te peça ajuda.

— Ficou com uma boa impressão minha — Decker guardou o prato e pôs-lhe as mãos nos ombros. As pontas do cabelo preto tocavam nos ombros, conferindo-lhe um aspeto relaxado. Porém, Rina não era assim. Intensa, concentrada, decidida… Esses eram os adjetivos mais apropriados. — Vou ligar-lhe e dizer-lhe que não aceito.

— Já não podes fazer isso, Peter. O Chris vai chegar dentro de algumas horas. Além disso, se mudares de ideias, vais parecer um covarde. E isso é o pior que pode acontecer. Estás entre a espada e a parede — pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo no nariz. Era alto e grande, mas Donatti também era. — Acho que devia ir contigo.

— Nem pensar! Preferia mudar de ideias.

— Ele gosta de mim.

— Precisamente por isso é que se sentiria tentado a dar-me um tiro. Está apaixonado por ti.

— Não está apaixonado por mim…

— Enganas-te.

— Então, pelo menos, leva-me contigo para a cidade e deixa-me em casa dos meus pais.

— Está bem, posso fazer isso — Decker olhou para o relógio da cozinha. — Deixa este desastre. Arrumo tudo quando regressar.

— Tens de ir já?

— Quero preparar o quarto, antes de o Chris chegar.

— Está bem. Vou buscar a minha mala. Liga-me quando acabares, quando estiver tudo em ordem.

— Vou ligar, prometo.

— Sim, sim — Rina deu-lhe uma palmadinha carinhosa. — Quando nos casamos, não prometemos amar, honrar e obedecer?

— Algo parecido… — concedeu Decker. — E, sem querer gabar-me, diria que cumpro os meus votos matrimoniais bastante bem.

— Cumpres bastante bem os dois primeiros — admitiu Rina. — É o terceiro que parece causar-te problemas.

Capítulo 2

 

Como que saído de um quadro de Diego Rivera, apareceu com um ramo enorme de lírios, quase do seu tamanho. Christopher Donatti media um metro e noventa, tal como Decker.

— Não te devias ter incomodado… — Antes de Chris conseguir mostrar surpresa, Decker tirou-lhe as flores e atirou-as para a bancada de mármore, junto da porta. Depois, virou-o e empurrou-o, até ficar colado à parede. Os movimentos de Decker eram rápidos e bruscos. Apontou a Beretta para a base do crânio. — Lamento muito, Chris, mas ela não confia muito em ti, neste momento.

Donatti não disse nada, enquanto Decker o revistava. Usava peças de boa qualidade, as ferramentas do seu ofício. Tinha uma S&W automática no cinto e uma pequena pistola Glock, de calibre .22, escondida num compartimento que tinha na bota. Sem parar de apontar a Beretta para o pescoço de Donatti, Decker esvaziou-lhe o bolso e atirou a carteira para a bancada. Disse-lhe para tirar os sapatos, o cinto e o relógio.

— O relógio?

— Sabes como são estas coisas, Chris. Agora, é tudo minúsculo. Quem sabe o que poderias esconder aí.

— É um Breguet.

— Não sei o que é isso, mas parece ser caro… — Decker tirou-lhe o relógio de ouro, que era incrivelmente pesado. — Não vou roubar-to. Só quero examiná-lo.

— É um relógio com o mecanismo à vista. Se abrires a parte de trás, poderás ver como funciona.

— Hum… Não vai explodir, pois não?

— É um relógio, não uma arma.

— Nas tuas mãos, tudo é uma arma.

Donatti não o negou. Decker disse-lhe para manter as mãos levantadas e o corpo contra a parede. Recuou alguns centímetros, lentamente, para ter um pouco mais de espaço. Sempre com atenção às mãos do oponente, Decker começou a esvaziar os carregadores das pistolas de Donatti.

— Podes virar-te, mas mantém as mãos levantadas.

— Tu és o chefe…

Virou o corpo até ficarem frente a frente. Sem as armas, Chris parecia imperturbável. Havia inexpressividade nos seus olhos, azuis, embora sem luminosidade. Era impossível saber se estava zangado ou se achava a situação engraçada.

Uma coisa era certa, Chris já tivera dias melhores. Estava cansado, tinha manchas na cara e a testa era um jardim onde a acne florescia. Deixara crescer o cabelo, já não o usava rapado como há seis anos, a última vez que Decker o vira pessoalmente. Escovara-o para trás, como o conde Drácula, bem cortado por baixo das orelhas. Continuava a ser desajeitado, mas os braços eram maiores do que Decker se recordava. Arranjara-se para a ocasião e usava uma camisola azul, calças cor de carvão e botas de pele de crocodilo.

— Os braços começam a doer-me um pouco.

— Baixa-os devagar.

Ele obedeceu.

— E agora?

— Senta-te. Mexe-te devagar. Se te mexeres devagar, eu também o farei. Se me apressares, dispararei primeiro e perguntarei depois — quando Donatti começou a sentar-se na cadeira, Decker deteve-o. — No sofá, por favor.

Donatti cooperou e deixou-se cair nas almofadas. Decker atirou-lhe o relógio, que ele apanhou no ar com uma mão e voltou a pôr no pulso.

— Ela está aqui?

— Está no quarto.

— É um começo. E vai sair?

— Sairá quando eu disser.

— Onde está o Gabe?

— Não está aqui — replicou Decker.

— Provavelmente, é o melhor — Donatti levou as mãos à cabeça e voltou a levantá-las segundos depois. — Suponho que faz sentido que estejas aqui.

— Obrigado pela tua aprovação.

— Olha, não vou fazer nada.

— Então, porque trazias armas?

— Ando sempre armado. Já posso falar com a minha esposa?

Decker ficou de pé, junto da bancada de mármore do bar, sem largar a Beretta.

— Algumas regras básicas. Número um: Permanecerás sentado. Não te aproximarás dela. E não quero movimentos rápidos. Deixam-me nervoso.

— Está bem.

— Tem cuidado com a linguagem e com as maneiras, e tenho a certeza de que tudo correrá lindamente.

— Sim… De certeza… — A voz dele era apenas um sussurro.

— Estás um pouco pálido. Queres um pouco de água? — perguntou, abrindo o bar. — Alguma coisa mais forte?

— Qualquer coisa.

Macallan, Chivas, Glenfiddich

Glenfiddich.

Poucos segundos mais tarde, Decker entregou-lhe um copo de vidro, com uma dose generosa de uísque escocês. Donatti bebeu um gole delicado, mas depois engoliu grande parte do conteúdo.

— Obrigado. Isto ajuda.

— De nada — Decker ficou a observá-lo. — Parece que começas a recuperar a cor.

— Não bebi nada o dia todo.

— É meio-dia.

— Segundo o horário de Nova Iorque, já é quase happy hour. Não queria que ela pensasse que sou fraco, mas sou — e bebeu outro gole. — Sabe que sou fraco. Que merda!

— Cuidado com a linguagem!

— Oxalá fosse esse o meu único problema. Então, estaria em boa forma — devolveu o copo vazio a Decker.

— Outro? — quando Donatti abanou a cabeça, ele fechou o bar. — O que aconteceu?

— O que aconteceu é que sou um idiota.

— Isso não serve para te descrever.

— Sempre tive problemas e sou de compreensão lenta.

— Estás a esquecer um elemento crucial, Chris. Não podes usar a tua esposa como saco de boxe, mesmo que tivesse abortado realmente.

— Não lhe dei um murro, bati-lhe.

— Isso também não é aceitável.

Donatti esfregou a testa.

— Eu sei. Só quis corrigir-te, porque sabia que estava a bater-lhe com a mão aberta. Se lhe tivesse dado murros, estaria morta.

— De modo que te apercebeste de que estavas a dar-lhe uma boa sova?

— Nunca tinha acontecido e não voltará a acontecer.

— E devia acreditar nisso, porque…

— Posso contar pelos dedos de uma mão as vezes em que perdi a cabeça. Olha, sei que ela está assustada, mas não tem razões para isso. Foi apenas… — murmurou. Quando tentou levantar-se do sofá, Decker apontou-lhe a pistola à cara. Voltou a sentar-se. — Posso ver a minha esposa, por favor?

— Pelo menos, desta vez, disseste «por favor» — Decker observou-o. — Deixa-me fazer algumas perguntas teóricas. E se ela não quiser falar contigo?

— Não teria acedido a encontrar-se comigo, se não quisesse falar.

— Talvez não quisesse dizer-to ao telefone. Isso dar-te-ia tempo para planear algo perigoso e, provavelmente, estúpido.

— Foi o que te disse? — Donatti levantou o olhar.

— E que tal se for eu a fazer as perguntas?

— Não tenho nada planeado. Fui um idiota. Não voltará a acontecer. Deixa-me ver a minha esposa. Está bem?

— E se ela não quiser voltar a ver-te? E se pedir o divórcio?

— Não sei — Donatti retorceu as mãos. — Não pensei nisso.

— Ficarias irritado. Não é verdade?

— Provavelmente.

— O que farias?

— Nada, contigo aqui — admitiu. E, finalmente, os olhos dele ganharam vida. — Decker, ela não vai pedir-me o divórcio, pelo menos não agora. Porque, em primeiro lugar e o mais importante, tenho dinheiro suficiente para a arrastar para uma batalha legal muito cara, pela custódia do Gabe. Seria muito mais fácil esperar até que ele fizesse dezoito anos. E Terry é uma mulher prática. Faltam três anos e meio para ter de abordar este assunto. Agora, gostaria de ver a Terry.

Estava a ofegar.

— Outro uísque? — perguntou Decker.

— Não — Donatti abanou a cabeça. — Estou bem — respirou fundo e expirou. — Estou pronto, se tu estiveres.

Decker observou-o com severidade.

— Estarei a vigiar todos os teus movimentos.

— Está bem. Não me vou mexer. Tenho o traseiro colado ao sofá. Podemos ir diretos à questão?

Não tinha sentido adiar o inevitável. Decker chamou-a. Pusera a cadeira de Terry de lado, para ter o caminho livre desde o canhão da pistola até ao cérebro de Donatti. Não que esperasse um tiroteio, mas era escuteiro e polícia, e tentava estar sempre a postos. Terry escondera as pernas por baixo do vestido comprido, mas a postura era elegante e régia. Novamente, o vestido carecia de mangas e deixava ver os braços bronzeados, enfeitados com diversas pulseiras. Olhava fixamente para a cara de Donatti, embora ele parecesse não conseguir olhar para ela nos olhos.

— Tens bom aspeto — elogiou.

— Obrigada.

— Como te sentes?

— Bem.

— Como está o Gabe?

— Está bem.

Donatti respirou fundo e olhou para o teto. Depois, olhou para a cara dela.

— O que posso fazer por ti?

— Uma pergunta interessante — murmurou ela. — Continuo a tentar descobrir.

Ele coçou a face.

— Farei qualquer coisa.

— Posso acreditar em ti? — antes de ele conseguir responder, continuou: — Não estou pronta para voltar para ti.

Donatti cruzou as mãos no colo.

— Está bem. E vais estar pronta, um dia?

— Possivelmente… Provavelmente, mas não agora.

— Está bem — Chris olhou para Decker. — Podes dar-nos um pouco de privacidade, por favor?

— Isso não vai acontecer… — Decker pegou nas flores. — Trouxe-te isto.

Terry olhou para os lírios.

— Depois, pedirei que tragam uma jarra — disse, virando-se para Chris. — São lindas. Obrigada.

Donatti estava inquieto.

— E… Quando achas que… Quer dizer, durante mais quanto tempo queres ficar aqui?

— Na Califórnia ou neste hotel?

— Referia-me a ficares longe de mim. Mas sim, quanto tempo tencionas ficar aqui?

— Não sei.

— Um mês? Dois meses?

— Mais — admitiu. E humedeceu os lábios.

— Isso vai sair um pouco caro. Não é que tencione preocupar-me com o dinheiro…

— Sim, é caro — afirmou Terry. — Quero arrendar uma casa. Tecnicamente, serias tu a arrendá-la. Vi uma de que gosto. Só estou à espera que passes o cheque.

Decker espantou-se com a determinação com que falava, desafiando-o a negar-lhe alguma coisa.

— Onde? — perguntou Donatti.

— Em Beverly Hills. Onde mais haveria de ser?

— O que quer? — perguntou Decker, quando ela tentou levantar-se.

— Tenho um pouco de sede.

— Sente-se. O que quer?

Pellegrino, com gelo.

— Eu trato disso. E tu, Chris?

— O mesmo.

— Sirva-lhe um uísque! — ordenou Terry.

— Estou bem, Terry.

— Eu disse que não estavas? — replicou ela. — Sirva-lhe um uísque.

Donatti levantou as mãos.

— Sem problema — acedeu Decker —, desde que ambos fiquem quietos.

— Eu não vou a lado nenhum — tranquilizou Donatti. Assim que o uísque tocou nos seus lábios, pareceu acalmar-se. — Bom… Fala-me dessa casa que vou arrendar.

— É numa zona chamada The Flats, que é das zonas mais caras. Custa doze mil dólares por mês, que é o mínimo nesse bairro. Temos de fazer algumas reparações, mas posso mudar-me de imediato. A principal razão por que escolhi Beverly Hills foi as escolas, que são boas.

— Não há problema — declarou Donatti. — O que quiseres…

A julgar pela conversa, parecia que Terry detinha o controlo da relação. Talvez fosse assim durante grande parte do tempo, mas não era sinónimo de tudo.

— Posso ter uma chave? — perguntou Donatti.

— Claro que sim. Vais arrendá-la.

— E durante quanto tempo tencionas viver lá, na casa que vou arrendar?

— Normalmente, os contratos de arrendamento são por um ano.

— Isso é muito tempo.

Terry inclinou-se para a frente.

— Chris, não te peço uma separação legal, apenas física. Depois daquilo que aconteceu, é o mínimo que podes fazer.

— Não estou a tentar contrariar-te, Terry. Só quero ter uma ideia do tempo. Se quiseres um ano, aceito. Isto tem a ver contigo, não comigo.

Ficou calada durante alguns segundos. Depois, continuou:

— Saberás onde estou e terás uma chave da casa. Podes ir lá quando quiseres. Não tenciono ir a lado nenhum. Achas justo?

— Mais do que justo — Donatti obrigou-se a sorrir. — De qualquer forma, será bom ter um lugar onde ficar, quando estiver na Costa Oeste. Provavelmente, é uma boa ideia.

— Portanto, fiz-te um favor.

— Eu não diria isso. Doze mil por mês… Que tamanho tem a maldita casa?

Terry esboçou um sorriso, um misto de humor e sedução.

— Tem quatro quartos, Chris. Tenho a certeza de que pensaremos em alguma coisa.

O sorriso de Donatti tornou-se verdadeiro.

— Tudo bem — acedeu. Bebeu mais um gole e riu-se. — Está bem. Se é isso que desejas… Está bem. Talvez sintas a minha falta, quando não estiver presente.

— Bem podes sonhar.

— Muito engraçada…

— Tens fome? — Terry percorreu o corpo dele com o olhar. — Perdeste peso.

— Tive um pouco de ansiedade.

— Como sabes o que é ansiedade?

Donatti olhou para Decker com uma expressão inescrutável.

— Que engenhosa, não é?

— Tens fome, Chris? — repetiu Terry.

— Poderia comer qualquer coisa.

— Aqui, há um restaurante excelente — replicou. Olhou para o relógio de diamantes que tinha no pulso, entre as pulseiras de ouro. — Está aberto. Não me importaria de comer.

— Incrível — Donatti começou a levantar-se, mas olhou para Decker. — Posso levantar-me, sem disparares?

— Vai para o restaurante e encomenda alguma coisa para os dois, Chris. Procura uma mesa ao lado, para mim. Já vamos ter contigo.

A expressão de Donatti tornou-se amarga.

— Estaremos num lugar público, Decker. Não vai acontecer nada. E se nos desses um pouco de privacidade?

— Estarei sentado noutra mesa — frisou Decker. — Sussurrem, se não quiserem que vos ouça. Vai andando. Encontramo-nos lá.

Donatti revirou os olhos.

— Vais devolver-me as armas?

— Na altura certa — replicou Decker.

— Podes ficar com as munições, mas dá-me as armas.

— Na altura certa…

— O que achas que vou fazer? Bater-te na cabeça, para que percas os sentidos?

— Nem sequer estava a pensar nisso mas, agora que o mencionas, és imprevisível.

Donatti virou-se para Terry.

— Importas-te que esteja armado?

— Depende dele — disse ela.

— Não servem para nada sem munições — quando Decker não respondeu, acrescentou: — Vamos, seria um gesto de boa-fé. Só peço o que é meu.

— Já ouvi, Chris — Decker abriu a porta. — Mas nem sempre conseguimos aquilo que desejamos.

E entreolharam-se. Depois, Donatti encolheu os ombros.

— Como queiras… — saiu pela porta, sem olhar para trás.

Decker abanou a cabeça.

— É frio como o gelo — disse, virando-se para Terry. — Lidou bem com ele.

— Espero que sim. Pelo menos, dar-me-á um pouco de tempo para pensar.

Decker percebeu que estava a tremer.

— Sente-se bem, Terry?

— Sim, estou bem. Um pouco… — a testa começara a suar e limpou o rosto com um lenço. — Sabe o que dizem, inspetor-coordenador. Nunca deixe que o vejam a suar.

E soltou uma gargalhada nervosa.

Capítulo 3

 

Enquanto Decker estava na cidade, a cerca de trinta quilómetros de casa, Rina aproveitou para reservar uma mesa para jantar, num dos muitos restaurantes kosher da avenida Pico. Saíram de casa dos pais às seis e, meia hora mais tarde, estavam sentados a uma mesa, a beber Côtes du Rhône. Embora Peter não fosse muito falador, nessa noite parecia estar especialmente apagado, portanto, Rina adorou dominar a conversa. Talvez Peter tivesse fome. Pensou que começaria a falar quando estivesse de bom humor. Mas, depois de comer o bife, as batatas fritas e a salada, continuava taciturno.

— O que se passa nessa tua cabeça? — perguntou Rina, finalmente.

— Nada.

— Não acredito.

— Vês? É aí que as mulheres se enganam. Cada vez que os homens não falam, associam-no a uma meditação profunda, que temos connosco próprios. No meu caso, estava a pensar na sobremesa… Se vale a pena ingerir todas essas calorias.

— Se quiseres, podemos partilhar alguma coisa.

— O que significa que vou comer noventa por cento.

— E se prescindirmos da sobremesa e bebermos café? Pareces cansado.

— A sério? — Decker acariciou o bigode ruivo e grisalho, como se estivesse a pensar em algo profundo. Embora os pelos faciais continuassem a ter parte da cor brilhante da juventude, o cabelo já era mais branco do que ruivo, mas continuava a ter bastante.

Sorriu e olhou para a esposa. Rina usava um vestido de cetim roxo escuro, que guardara no armário da mãe. Embora fosse demasiado religiosa para mostrar o peito, o decote acentuava o seu lindo pescoço. Decker oferecera-lhe uns brincos de diamantes de dois quilates no quadragésimo quinto aniversário e ela usava-os sempre que podia. Adorava vê-la com coisas caras, ainda que, com aquilo que recebia, isso não acontecesse com muita frequência.

— Estou realmente um pouco cansado.

— Então, vamos para casa.

— Não, não. Sabia-me bem uma chávena de café.

— Está bem — Rina tocou-lhe nas mãos. — Não estás apenas cansado, estás incomodado. O que passou esta tarde?

— Já te disse. Correu tudo lindamente.

— E, mesmo assim, continuas perplexo.

Decker escolheu bem as palavras.

— Quando a Terry falava com ele, parecia segura de si, como se tivesse o controlo da situação.

— Talvez fosse assim, contigo por perto.

— Tenho a certeza de que, em parte, era assim. E ele parecia estar arrependido, portanto, a Terry teve bastante liberdade. Não sei, Rina. Revelou-se quase mandona. Enquanto comiam, era quase sempre ela a falar.

— E conseguiste ouvir o que diziam?

— Consegui vê-los. Era evidente que ela dominava a conversa.

— Talvez seja tagarela quando se sente nervosa.

— Talvez. Antes de nos encontrarmos com ele no restaurante, falámos durante alguns minutos. De repente, começou a tremer, ficou coberta de suores frios.

— Aí tens.

— Mas havia mais alguma coisa, Rina. Se não conhecesse a história, teria jurado que tentou seduzi-lo durante a refeição… Estava sensual. Havia algo estranho.

— Porque achas estranho? Gosta dele.

— Há seis semanas, deu-lhe uma sova.

— Ela sabe como é mas, mesmo assim, continua a haver alguma coisa nele que o torna atraente. Toma más decisões. Foi assim que acabou nesta situação. Ninguém lhe disse que tinha de ir visitá-lo à prisão e ir para a cama com ele sem usar proteção.

— Não é estúpida, Rina! É uma mãe conscienciosa e é médica no serviço de urgências.

— Como todos nós, tem aspetos positivos e negativos. No caso da Terry, as fraquezas são perigosas — replicou. E inclinou-se para a frente. — Mas, como te disse esta manhã, Peter, isso não é um problema nosso. Contratou-te. Pagou-te e fizeste o teu trabalho. E se esquecesses o assunto?

— Tens razão — Decker ergueu-se na cadeira e beijou-lhe a mão. — Saímos para jantar e mereces um marido que não esteja em coma.

— Queres beber o tal café?

— Um café seria fantástico! — Decker sorriu. — Até comia uma sobremesa.

— O que achas do bolo de pêssego?

— Parece-me muito bem. Atrevemo-nos a pedi-lo com gelado de baunilha ou a mistura congelada que fazem para simular o verdadeiro sabor?

— Claro — concordou Rina, sorridente. — Vamos agir como loucos!

 

 

O telemóvel começou a tocar quando o carro chegou ao topo da autoestrada 405 e começou a descer para o vale de São Fernando. As montanhas que ladeavam o caminho faziam com que houvesse pouca rede. Visto que era Decker que ia a conduzir, Rina tirou-lhe o telemóvel do bolso do casaco.

— Se for a Hannah, diz-lhe que chegaremos a casa dentro de vinte minutos.

— Não é a Hannah. Não conheço o número — carregou no botão para atender. — Sim?

Fez-se silêncio do outro lado da linha. Por um instante, Rina pensou que a chamada tinha caído, mas depois viu que o ecrã do telemóvel continuava ligado.

— Sim? — repetiu. — Posso ajudar?

— Quem é? — perguntou Decker. Ela encolheu os ombros. — Então, desliga.

— Perdão — era a voz de um homem. Pigarreou. — Procuro o inspetor-coordenador Decker.

— Este é o telemóvel dele. Com quem estou a falar?

— Com Gabe Whitman.

Rina teve de fazer um esforço para não soltar um grito abafado.

— Está tudo bem?

— Com quem estás a falar? — perguntou Decker.

— Não — respondeu Gabe, do outro lado da linha. — Quer dizer, não sei.

— Quem é, Rina? — insistiu Decker.

— Gabe Whitman.

— Meu Deus! Diz-lhe para esperar.

— Ele já vai atender — informou Rina.

— Obrigado.

Decker saiu da estrada, parou o carro na berma, ligou as luzes de emergência e agarrou no telemóvel.

— Fala o inspetor-coordenador Decker.

— Lamento incomodar.

— Não me incomodas. O que se passa?

— Não encontro a minha mãe. Não está aqui e não atende o telemóvel. O meu pai também não atende o dele.

— Está bem — acedeu. O cérebro de Decker funcionava a mil à hora. — Quando falaste com a tua mãe pela última vez?

— Voltei para o hotel por volta das seis e meia ou sete. Íamos jantar, mas ela não estava aqui. O carro dela também não está à porta, não vejo a mala, não me deixou um bilhete, nem nada. Isso é invulgar nela.

Decker sentiu um nó no estômago. O relógio mostrava que eram quase nove.

— Quando falaste com ela pela última vez, Gabe?

— Por volta das quatro. O senhor já se tinha ido embora. A minha mãe disse-me que tinha corrido tudo bem. Parecia tranquila. Disse que ia sair para fazer umas coisas e que voltaria por volta das seis. Não sei se estou a exagerar, mas com o Chris nunca se sabe.

— Onde estás agora?

— Estou no hotel.

— No quarto?

— Sim, senhor.

— Está bem. Gabe, vou dar a volta e estarei aí dentro de meia hora. Sai do quarto e espera por mim no vestíbulo. Quero que estejas num lugar público. Está bem?

— Está bem — replicou. E fez uma pausa. — O quarto está bem… Quer dizer, não me parece que tenham tocado em nada.

— Isso não significa que o teu pai não possa aparecer de repente. Não seria boa ideia se ficassem a sós.

— Isso é verdade — concordou. Outra pausa. — Obrigado.

— Não tens de agradecer. Sai daí e não olhes para trás.

Quinze minutos mais tarde, Decker entrou com o Porsche no estacionamento. Os empregados não eram os mesmos da tarde. Quando lhe perguntaram quanto tempo ficaria, Decker disse que não sabia.

O complexo hoteleiro consistia em quase sete hectares de plantas luxuriantes e vegetação tropical, no sopé de Bel Air. O ar noturno estava impregnado com o cheiro dos jasmins em flor e um certo toque a gardénias. Palmeiras, fetos e arbustos em flor ladeavam os caminhos empedrados, e cobriam a margem de um lago artificial que estava cheio de patos e cisnes. Decker e Rina atravessaram uma ponte e observaram o lago, e as aves a nadar.

Decker observou-a.

— Porque não levas o carro e vais andando para casa?

— A Hannah está em casa de uma amiga. Posso esperar.

— Não sei se quero que estejas aqui, se o Chris aparecer. Tenho um mau pressentimento.

— E se esperar no vestíbulo?

— Não te importas? Sou capaz de demorar um bom bocado. Se não a encontrar, terei de revistar o hotel.

— Não será um problema, a não ser que me mandem embora — replicou. E fez uma pausa. — O que vais fazer com o Gabe? Não sabe o que está a acontecer. Não podes permitir que fique aqui sozinho, mesmo que fosse maior de idade.

Ambos ficaram calados.

— Pode ficar connosco — acrescentou Rina.

— Não me parece que seja boa ideia.

— Acho que não tens escolha.

— Tem um avô que vive no vale.

— Então, entra em contacto com ele, amanhã de manhã. Uma noite connosco não vai mudar nada.

— És realmente uma mãe galinha.

— Eu sou assim — confirmou Rina. — Venham a mim os abatidos, os pobres, aqueles que desejam respirar em liberdade, et cetera, et cetera. Emma Lazarus e eu tínhamos muito mais em comum do que o apelido.

 

 

Embora o hotel fosse constituído por uma série de bangalós discretos de estuque cor-de-rosa, com telhados de telhas vermelhas, estilo mediterrânico, ligados entre si, o vestíbulo era um edifício independente. Através da janela, Decker viu o balcão da receção com uma mulher uniformizada a rever uns papéis, uma portaria vazia e um conjunto de móveis tradicionais de frente para uma lareira de pedra. Uma das poltronas bege estava ocupada por um adolescente desajeitado; O Pensador, de Rodin. Rina e ele entraram e o rapaz ergueu a cabeça, e levantou-se. Decker tentou sorrir, para o tranquilizar.

— Gabe?

Ele assentiu. Era um rapaz bonito, de nariz aquilino, queixo forte, cabelo loiro-escuro e olhos verde-esmeralda, emoldurados por uns óculos. Não era muito corpulento, mas tinha a mesma compleição definida e musculada que o pai, na adolescência. Devia rondar o metro e oitenta de altura.

Decker estendeu-lhe a mão e o rapaz apertou-a.

— Tudo bem? — Gabe encolheu os ombros, com impotência. — Esta é a minha esposa. Vai esperar por mim aqui… Vai esperar por nós. Ainda não soubeste nada, de ninguém?

— Não, senhor — olhou para Rina e depois para Decker. — Lamento por vos ter arrastado para aqui. Provavelmente, não é nada.

— Seja o que for, não é um incómodo. Vamos ao quarto.

A empregada da receção levantou o olhar.

— Está tudo bem, senhor Whitman?

— Eh, sim — Gabe esboçou um sorriso forçado. — Está tudo bem.

— Tem a certeza?

Gabe assentiu com rapidez. Decker virou-se para Rina.

— Volto já.

— Demora o tempo que for preciso.

Decker e o seu jovem acompanhante saíram para o ar fresco e nebuloso da noite, e ficaram em silêncio enquanto andavam. Os caminhos pareciam ser diferentes à noite. Com a iluminação artificial camuflada por entre as plantas, todo o complexo tinha um aspeto surreal, como o cenário de um filme. Gabe foi andando, indo de um jardim para outro, até chegar ao bangaló que partilhava com a mãe. Abriu a porta, acendeu a luz e entraram.

— Está exatamente como o deixei — disse Gabe.

Praticamente igual a como estava quando Decker se fora embora naquela tarde. As flores que Chris dera a Terry estavam numa jarra, na mesinha do café. O copo de uísque de Donatti estava no lava-loiça do bar. Tinham despejado o caixote do lixo e o sofá da sala transformara-se numa cama. Numa bandeja de prata, havia várias barras de chocolate e a ementa do serviço de quartos para o pequeno-almoço. Na mesinha, havia água e ouvia-se música clássica, procedente da aparelhagem.

— Dormes aqui?

Gabe assentiu.

Decker entrou no quarto. A cama de Terry também estava feita.

— As camas estavam abertas, quando chegaste por volta das seis?

— Não, senhor. Vieram abri-las mais tarde, por volta das oito — fez uma pausa. — Provavelmente, não os devia ter deixado entrar.

— Não importa, Gabe — Decker observou o quarto. Havia muita roupa no armário e um pequeno cofre. Perguntou ao rapaz se sabia os números para o abrir.

— Deste não sei, mas sei o código que a minha mãe usa habitualmente.

— Podes tentar abri-lo?

— Claro.

Gabe marcou vários números. Teve de fazer duas tentativas mas, por fim, abriu o cofre. Estava cheio de joias e dinheiro.

— Tens alguma coisa para transportar objetos de valor? — perguntou Decker.

— Porquê?

— Se a tua mãe não voltar, não podes ficar aqui sozinho.

— Não me acontecerá nada.

— Tenho a certeza de que sabes cuidar de ti, mas sou polícia e tu és menor. Estaria a infringir a lei, se te deixasse ficar aqui. Além disso, dadas as circunstâncias, não quereria que ficasses sozinho, mesmo que tivesses dezoito anos.

— E para onde me vai levar?

— Podes escolher — Decker esfregou as têmporas. — Sei que tens um avô e uma tia que vivem em Los Angeles. Sentir-te-ias confortável ao ligar para um deles? Não me importo de te levar.

— É a minha única opção?

— Podes passar a noite em minha casa e, com sorte, as coisas estarão resolvidas de manhã.

— Essa seria a minha primeira opção. Preferia isso, a ir para casa do meu avô. A minha tia é simpática, mas um pouco despistada. Não é muito mais velha do que eu.

— Quantos anos tem a Melissa?

— Vinte e um… Mas é muito imatura.

— Está bem. É o que faremos. Irás com a minha esposa. Eu ficarei por aqui durante algum tempo e tentarei descobrir o que se passa.

— Porque não posso ficar aqui consigo, enquanto tenta descobrir?

— Porque pode demorar um bom bocado. Será melhor ires para casa com a minha mulher e deixares que faça o meu trabalho. Vemo-nos de manhã. Se a tua mãe regressar, ligo-te imediatamente. E se souberes alguma coisa dela, ou do teu pai, liga-me para não andar a perder tempo. Parece-te bem?

Gabe assentiu.

— Obrigado, senhor. Agradeço muito.

— Não tens de quê — Decker pegou num bloco. — Tenho o número da tua mãe. Precisarei do contacto do teu pai e também do teu número de telemóvel.

Gabe citou uma série de números.

— Já deve saber que o meu pai muda de número muitas vezes. Talvez dê sinal num dia e no dia seguinte não.

— Quando foi a última vez que falaste com o teu pai?

— Deixe-me pensar. O Chris ligou-me no sábado, de manhã… Por volta das onze. Tinha acabado de aterrar. Disse-me que estava no aeroporto e que, no dia seguinte, se encontraria com a minha mãe.

— E o que disseste?

— Não me recordo bem. Disse-lhe… Está bem. Depois, perguntou-me como estava a minha mãe e eu disse-lhe que estava bem. Foi uma conversa de dois minutos… O típico entre nós — replicou. E mordeu o lábio. — Na verdade, o Chris não gosta de mim. Sou um incómodo, algo que se interpõe entre a minha mãe e ele. Mal me fala, exceto quando se trata da minha música ou da minha mãe. Mas vê-se obrigado a lidar comigo, porque sou aquilo que o une a ela. É um desastre.

— O teu pai é um desastre. Por acaso não sabes o número do voo dele, pois não?

Gabe abanou a cabeça.

— Sabes em que companhia área costuma viajar?

— Quando não freta um jato privado, costuma viajar na American Airlines em primeira classe, de costa a costa. Gosta de esticar as pernas.

— Se se fosse embora de Los Angeles, para onde achas que iria?

— Podia ir para casa. Ou podia ir para o Nevada e ficar lá um tempo.

— Tem bordéis em Elko, não é? — corou e Decker perguntou: — Sabes como se chamam esses locais?

— Um deles é A Cúpula do Prazer — tinha a cara vermelha. — O Palácio do Prazer… Tem três ou quatro sítios com a palavra «prazer».

— Tentaste ligar para esses sítios?

Gabe abanou a cabeça.

— Não tenho os números. Talvez apareçam na lista telefónica. Posso ligar para as informações, se quiser.

— Não. Eu trato disso. Faz uma mala com algumas coisas e tira o dinheiro e as joias do cofre. Depois, vou acompanhar-te ao vestíbulo.

— Lamento por ser um incómodo. Sinto-me um idiota.

— Não és um incómodo — passou-lhe um braço pelos ombros. Ao princípio ficou rígido, mas depois relaxou os ombros, sob o peso do braço de Decker. — E não te preocupes demasiado. Provavelmente, tudo se irá resolver.

— Tudo se resolve. Às vezes, resolve-se para bem. Outras vezes, para mal. É essa segunda opção que me preocupa.