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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2007 Susan Wiggs. Todos os direitos reservados.

A CABANA DE INVERNO, nº 40 - Junho 2012

Título original: The Winter Lodge

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin, logotipo Harlequin e Romantic Stars são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-0237-7

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversion ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Imagens de capa:

Casal: BIBACOMUA/DREAMSTIME.COM

Paisagem: JOOPSNIJDER/DREAMSTIME.COM

 

Comida para pensar
De Jenny Majesky

 

Kolaches para principiantes

 

É curioso a quantidade de cozinheiros que se deixam intimidar pelo fermento. Quando veem que faz parte dos ingredientes de uma receita, viram rapidamente a página. Mas não há razão para ter qualquer medo da seguinte receita.

Esta massa em particular é muito manejável. É elástica, forte e fá-lo-á sentir-se como um autêntico profissional. Como Helen Majesky, a minha avó, costumava dizer: «tanto na cozinha como na vida, as pessoas sabem sempre mais do que pensam».

 

Kolaches

 

1 colher de sopa de açúcar

2 saquetas de fermento em pó (o que é uma pena, pois o fermento é vendido em embalagens de três saquetas)

½ chávena de água quente

2 chávenas de leite

6 colheres de sopa de manteiga

2 colheres de chá de sal

2 gemas de ovo ligeiramente batidas

½ chávena de açúcar

6¼ chávenas de farinha

1½ barra de manteiga derretida

 

Colocar o fermento no copo de medição e polvilhar sobre ela uma colher de sopa de açúcar. Acrescentar a água quente. A que temperatura? A maior parte dos livros de cozinha recomenda entre quarenta e cinquenta graus. Os cozinheiros experientes são capazes de calcular a temperatura salpicando algumas gotas no interior do pulso. Os principiantes deverão utilizar um termómetro. Se a água estiver excessivamente quente, matará os ingredientes ativos.

Aquecer o leite numa caçarola, acrescentar a manteiga e mexer até que fique completamente derretida. Deixar arrefecer até que fique morna e verter na tigela onde se misturarão os ingredientes. Acrescentar o sal e o açúcar, e incorporar a pouco e pouco as gemas de ovo, mexendo sempre para evitar que coalhe. De seguida, deitar o fermento.

Acrescentar a farinha, chávena por chávena, sem deixar de mexer. Quando começar a ser muito difícil mexer a massa, começar a amassar com as mãos, tentando que a massa fique reluzente e pegajosa. Continuar a acrescentar a farinha e a amassar, até que a massa adquira um certo brilho. Colocar a massa num recipiente previamente untado, cobri-la com um pano húmido e deixá-la num lugar quente. Ao fim de aproximadamente uma hora, a massa terá duplicado o seu tamanho. A minha avó costumava deixar as marcas de dois dedos enfarinhados na mesa e, se as marcas permanecessem, dizia que a massa tinha subido. Depois, é óbvio, é necessário picar a massa para a desinchar. Um suspiro suave perfumado pelo fermento é o indicador de que a massa está pronta.

Tirar porções do tamanho de um ovo e arredondá-las. Colocá-las espaçadamente no tabuleiro do forno e assá-las durante quinze minutos. Fazer um buraco com o dedo em cada uma das bolas para colocar sobre elas a fruta. O recheio para os kolaches foi fonte de discussões e debates entre cozinheiros polacos, mas a minha avó nunca participou neles. «Fazer qualquer coisa que saiba bem» era o seu lema. Uma colher de sopa de doce de morango, pêssego em calda, um figo seco, uma ameixa ou um cubo de queijo doce podem ser recheios adequados.

Preparar a cobertura misturando ½ chávena de manteiga derretida com uma chávena de açúcar e uma colher de chá de canela. Pincelar cada kolache com a cobertura, colocar o tabuleiro num lugar quente e deixar repousar a massa durante perto de uma hora. Enquanto isso, pré-aquecer o forno a cento e oitenta graus e assar os kolaches entre vinte e quarenta minutos, até que adquiram um tom dourado. Prestar particular atenção à base, que tende a queimar-se se se encontrar excessivamente perto da fonte de calor.

Tirar os bolos do forno, pincelá-los com manteiga derretida e levá-los para um lugar frio. Com esta receita, obteremos três dúzias de kolaches.

A minha avó costumava dizer-me que não me preocupasse com o tempo que o processo demorava. Cozinhar é um ato de amor e quem calcula a quantidade de tempo que se dedica ao amor?

Um

 

Jenny Majesky afastou-se da secretária e espreguiçou-se, massajando as costas para tentar aliviar uma ligeira dor. Algo, possivelmente o profundo silêncio da casa vazia, a tinha acordado às três da madrugada e não fora capaz de voltar a dormir. De chinelos e robe, estivera a tentar concentrar-se na coluna que escrevia para o jornal, mas, pelos vistos, também não estava em condições de escrever.

Eram muitas as coisas que queria dizer, as histórias que queria contar, mas como resumir as lembranças e tudo o que tinha aprendido na cozinha durante a vida inteira numa coluna semanal?

Jenny sempre quisera escrever mais do que uma coluna. E a vida, compreendeu, estava a começar a deixá-la sem desculpas para não o fazer. Na realidade, já deveria ter começado a escrever um livro.

Tal como qualquer escritor que se prezasse de o ser, ao ver que o tempo não rendia, Jenny decidiu deixar a escrita para mais tarde. Com ar ausente, pegou na aliança de casamento da sua avó, que guardava num pratinho de porcelana chinesa na sua secretária. Ainda não tinha decidido o que fazer com aquela aliança simples de ouro que Helen Majesky usara durante cinquenta anos de casamento e uma década de viuvez. Quando cozinhava, a sua avó guardava sempre a aliança no bolso do avental. Era quase um milagre que nunca a tivesse perdido. Mas fizera Jenny prometer que não a enterrariam com ela.

Enquanto virava a aliança entre os dedos, Jenny imaginava as mãos da sua avó, umas mãos fortes e firmes para amassar o pão, mas que sabiam ser delicadas quando Helen acariciava as faces da neta ou as pousava na sua testa para ver se tinha febre.

Jenny deslizou o anel no seu dedo e fechou a mão. Ela também tinha uma aliança de casamento, uma aliança que lhe tinham entregado e que ela recebera com esperança, mas que nunca usara. Guardava-a no fundo de uma gaveta que nunca abria.

Era quase impossível, nas horas escuras da madrugada, não fazer uma contagem de todas as suas perdas. O abandono da sua mãe, que tinha desaparecido quando era criança, a perda do seu avô e, por fim, possivelmente a mais importante e dolorosa para ela, a da sua avó.

Só tinham passado algumas semanas desde que a tinham enterrado. Depois do frenesi inicial de visitas e chamadas, produzira-se um vazio que a fazia sentir-se profundamente sozinha. Como era óbvio, tinha amigos e colegas de trabalho que a adoravam como se fizesse parte da família. Mas a presença firme da sua avó, que a tinha criado como se fosse sua própria filha, tinha desaparecido.

Pela força do hábito, guardou o documento em que estivera a trabalhar. Depois, atou o robe com força, aproximou-se da janela e apoiou a testa no vidro frio para observar a noite invernal. A neve eliminava as arestas afiadas e as cores da paisagem. A meio da noite, a Maple Street estava completamente deserta, banhada pela luz esbranquiçada do candeeiro solitário da rua onde Jenny tinha vivido durante toda a sua vida. Espreitara muitas vezes pela aquela janela, à espera... Do quê? À espera que algo mudasse, que algo começasse.

Suspirou, inquieta, e o seu fôlego embaciou o vidro. Os flocos de neve, cada vez mais abundantes, formavam redemoinhos à volta do candeeiro. Jenny adorava a neve, sempre tinha gostado. Ao contemplar aquela paisagem, imaginava-se em criança, a subir por aquela colina, atrás do seu avô. Costumava caminhar sobre os seus passos, procurando os rastos que o seu avô deixava na neve e arrastando atrás dela um trenó atado a uma corda.

Os seus avós tinham estado ao seu lado durante todos os momentos da infância. Depois da morte deles, já não havia ninguém com quem partilhar aquelas lembranças, ninguém para quem pudesse olhar e perguntar «Lembras-te de quando...?».

A sua mãe tinha partido quando ela tinha quatro anos e o seu pai era um estranho que conhecera seis meses antes. Mas Jenny não o lamentava. Pelo que sabia dos seus pais, nenhum deles estava tão preparado para educar uma menina como Helen e Leo Majesky.

Um ruído, uma pancada surda seguida de algo parecido a um arranhão na madeira, sobressaltou-a, afastando-a bruscamente dos seus pensamentos. Inclinou a cabeça, apurou o ouvido e decidiu que devia ter sido a neve ou algum bocado de gelo a cair pelo telhado. Uma pessoa não sabia até que ponto uma casa podia ser silenciosa enquanto não se visse completamente sozinha nela.

Desde que a sua avó tinha morrido, Jenny acordava sempre a meio da noite, com a cabeça cheia de lembranças que pareciam estar a pedir-lhe aos gritos que as escrevesse. Todas eles pareciam emanar, tal como o cheiro do forno, da cozinha da sua avó. Jenny escrevera um diário durante toda a sua vida e, nos últimos anos, esse hábito dera lugar a uma coluna no Avalon Troubadour, onde intercalava receitas com tradições populares e piadas pessoais. Desde que a sua avó já não estava ao seu lado, Jenny já não podia comentar as receitas com ela ou perguntar-lhe a origem de um certo ingrediente ou de alguma técnica de cozinhar. Jenny estava completamente só e tinha medo de esquecer tudo o que sabia se demorasse demasiado a transcrevê-lo.

Aquele pensamento pô-la novamente em ação. Tinha a intenção de transcrever todas as receitas da sua avó, algumas delas ainda escritas em polaco em papéis amarelados pelo tempo. Helen guardava aquelas receitas na cozinha, numa caixa de latão que estava fechada há anos. Sem lhe importar que fossem três e meia da madrugada, Jenny desceu as escadas. Quando entrou na despensa, sentiu-se assolada por um conjunto de aromas dolorosamente familiares: o das especiarias que a sua avó utilizava, o da farinha e o dos cereais. Pôs-se em pontas dos pés para procurar uma caixa velha de latão. Conseguiu tirá-la da prateleira, mas perdeu o equilíbrio e a caixa acabou no chão. As receitas caíram aos seus pés.

Jenny soltou um palavrão que jamais teria utilizado na presença da sua avó e continuou em pontas dos pés, tentando não pisar nenhum daqueles papéis frágeis. Necessitava de uma lanterna, porque não havia luz na despensa. Encontrou-a numa gaveta, mas as pilhas estavam gastas e sabia que não havia pilhas novas em casa. Considerou a possibilidade de acender uma vela, mas não queria ter nenhum percalço com nenhuma daquelas receitas manuscritas e únicas. Apoiou-se contra a bancada da cozinha, levantou os olhos para o teto e sussurrou:

– Desculpa, avó.

Reparou no detetor de fumo. «Claro!», pensou. Puxou uma das cadeiras da cozinha, subiu para cima dela, abriu o detetor de fumo, tirou as pilhas e meteu-as na lanterna.

Regressou à despensa e recolheu as receitas com muito cuidado, que rangiam sob os seus dedos como folhas secas. Guardou-as novamente na caixa e levou-a para a cozinha. Eram notas e receitas que a sua avó tinha escrito na língua nativa dela, o polaco. Na parte de trás de uma folha amarela com os cantos gastos pelo tempo, descobriu uma assinatura. A mão da sua avó tinha escrito o nome Helenka Maciejewski dúzias de vezes. Aquele era o nome da sua avó, antes de o ter anglicizado. Certamente, tê-lo-ia escrito quando ainda não se casara.

Havia muitas coisas sobre os seus avós que Jenny desconhecia. Não sabia, por exemplo, como se tinham sentido ao abandonarem, muito jovens, a única casa que conheciam para iniciarem uma nova vida no outro lado do mundo. Teriam tido medo? Estariam entusiasmados com a mudança? Teriam discutido? Apoiar-se-iam um ao outro?

Fechou os olhos ao sentir o início de um ataque de pânico. Aqueles ataques eram uma experiência relativamente nova para Jenny, uma experiência tão inesperada como sombria. O primeiro tinha-o sofrido no hospital, quando estava a cumprir as obrigações próprias dos parentes mais próximos de um paciente. Estava a preencher um formulário quando, de repente, tinham começado a entorpecer-lhe os dedos da mão esquerda e tivera de largar a caneta para levar a mão à garganta.

– Não consigo respirar – dissera à enfermeira. – Acho que estou a ter um enfarte.

O médico que a tinha atendido, um médico residente com aspeto cansado procedente de Tonawanda, mostrara-se muito atencioso enquanto a examinava com paciência e lhe explicava o que se passava. Era algo normal, dissera-lhe, aqueles ataques eram uma resposta física a um trauma e os sintomas eram tão reais e aterradores como os de qualquer enfermidade.

Desde então, Jenny familiarizara-se intimamente com aqueles sintomas. Sendo uma mulher prática e sensata, supunha-se que não podia sucumbir a uma coisa tão incontrolável e irracional como um ataque de pânico. No entanto, naquele momento, sentia-se incapaz de parar aquela sensação desagradável. Era como se um exército de aranhas estivesse a subir pelo seu peito e o coração estivesse prestes a explodir-lhe.

Olhou, desesperada, à sua volta, perguntando-se onde teria deixado os comprimidos que o médico lhe dera. Odiava aqueles comprimidos quase tanto como os ataques de pânico. Porque não era capaz de o superar sozinha? Porque não lhe bastava uma chávena de café e um dos bolos de doce de damasco da sua avó?

Isso, pelo menos, poderia servir-lhe de distração. Àquela hora, um dos poucos lugares onde podia encontrar-se alguém acordado em Avalon era a padaria que os seus avós tinham fundado em mil novecentos e cinquenta e dois. Helen especializara-se nos kolaches, tartes polacas recheadas de fruta ou de queijo doce, que se tinham tornado uma lenda local. Todos os restaurantes e lojas especializadas da praça os pediam e vendiam-nos também aos turistas polacos que chegavam a Avalon vindos de Nova Iorque, procurando o fresco da erva no verão ou as cores extraordinárias do outono.

Depois da morte da sua avó, Jenny era a única proprietária da padaria.

Decidida a vencer o medo, vestiu rapidamente umas calças, uma camisola grossa, uma parka e um gorro de lã, e calçou umas botas altas. Como era óbvio, não podia utilizar o carro enquanto os limpa-neves não tivessem feito a sua ronda. Além disso, para poder tirar o carro da garagem, primeiro teria de tirar a neve do caminho, algo que odiava. A padaria ficava apenas a seis quarteirões de distância, numa das praças mais centrais e importantes da vila. Só demoraria alguns minutos a chegar lá e talvez o exercício a ajudasse a superar a crise de ansiedade.

De qualquer forma, pegou no frasco de comprimidos e guardou-o no bolso.

Agarrou na mala e começou a caminhar no meio de um silêncio glacial. Deixara de nevar e as nuvens tinham-se afastado, permitindo ver as estrelas. Sentia a neve fresca debaixo dos seus pés enquanto fazia aquele caminho que percorrera desde criança. Tinha crescido na padaria, rodeada da fragrância intensa do pão e das especiarias, dos ruídos das máquinas, dos temporizadores dos fornos e dos tabuleiros.

Uma única luz iluminava a porta traseira da padaria. Permaneceu ali durante alguns segundos, sacudindo a neve das botas. Uma vez lá dentro, tirou-as e calçou os chinelos que estavam colocados numa estante ao lado da porta.

– Sou eu – anunciou, enquanto percorria a zona de trabalho com o olhar.

Estava tão limpa como sempre, com os sacos de farinha apoiados contra a parede e os garrafões de mel ao seu lado. Os ingredientes para as especialidades estavam colocados em prateleiras que iam do chão até ao teto, em recipientes que indicavam claramente o seu conteúdo: pinhões, azeitonas, nozes, passas, painço, etc. As arcas frigoríficas estavam imaculadas, os fornos e as bancadas resplandeciam sob as luzes, e os aromas intensos da canela e do fermento inundavam o ar. Na aparelhagem ouvia-se a música dos Three 6 Mafia, o que indicava que Zach estava a trabalhar. Entre os batimentos rítmicos do hip-hop podia ouvir o som da batedeira.

– Sou eu, Zach! – gritou, esticando o pescoço para ver se o via.

Zach saiu da zona das batedeiras, empurrando um carrinho cheio de massa acabada de fazer. Zach Alger, que já estava no seu último ano do liceu, trabalhava há dois anos na padaria. Não parecia importar-lhe ter de se levantar de madrugada e ia sempre para a escola com um saco cheio de bolos frescos. Tinha uns traços nórdicos inconfundíveis, olhos azuis, cabelo loiro, quase branco, e um rosto enérgico e atraente.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou a Jenny.

– Não conseguia dormir – respondeu, ligeiramente envergonhada. – Laura está por aqui?

– A preparar o pão – respondeu o rapaz, enquanto transportava a massa.

Laura Tuttle trabalhava na padaria há trinta anos e, nos últimos vinte e cinco, como mestre de padaria. Conhecia o negócio melhor do que a própria Jenny e dizia que adorava trabalhar àquelas horas, que o horário da padaria se adaptava perfeitamente ao seu ritmo de vida.

– Oh, vejam quem está aqui! – exclamou ao vê-la, mas nem sequer levantou o olhar.

– Estava desejosa de comer um kolache.

Jenny empurrou as portas que conduziam à zona do café e lá serviu-se de uma chávena de café e de um bolo do dia anterior. Regressou à zona de trabalho, apreciando o sabor do doce, mas sem ter recuperado a calma. Procurou um avental num dos cabides da porta e pô-lo.

Jenny raramente trabalhava como padeira. Como proprietária e gerente, estava sempre ocupada a fiscalizar e a gerir o negócio. Tinha um escritório no andar de cima, com vista para a praça e um monitor de segurança onde via tudo o que acontecia no balcão da padaria. Passava a maior parte do dia a atender as necessidades dos empregados, dos fornecedores e dos clientes. Vivia com o telefone colado à orelha e os olhos cravados no monitor. Mas, às vezes, as pessoas tinham de arregaçar as mangas e pôr as mãos na massa. E não havia sensação comparável à de afundar as mãos em massa quente. Era como sentir algo vivo entre os dedos.

Atou o avental e aproximou-se de Laura. Os pães especiais faziam-se em tabuleiros mais pequenos e completamente à mão. Naquele dia, preparariam um pão polaco tradicional, feito com ovo, raspa de laranja e passas.

Laura e ela trabalharam lado a lado, pesando as porções de massa antes de acabarem de lhes dar forma, embora ambas fossem capazes de as calcular a olho.

Do outro lado da padaria, estava a arca frigorífica onde guardavam os bolos da sua avó. Como era óbvio, tecnicamente não eram de Helen Majesky, mas as receitas originais do merengue de limão, do bolo de frutos do bosque, do bolo de leitelho e de todos os demais eram dela. Os segredos e as técnicas tinham passado de uma geração de padeiros para a seguinte e, naquele momento, inclusive depois de morta, parecia gerir a padaria com a mesma delicadeza e doçura de que quando era viva.

Jenny sentia-se estranhamente distante de si mesma enquanto fazia os pães. Via as suas mãos brancas, cobertas de farinha, e via as mãos da sua avó, a levantarem e a virarem a massa com uma paciência e um ritmo que Jenny não reconhecia como próprios. A morte da sua avó ainda estava muito presente. Tinham passado três semanas, dois dias e catorze horas desde então. Jenny odiava saber com aquela precisão o momento em que começara a sua solidão absoluta.

Laura continuava a trabalhar, colocando cada bola de pão num molde. Abanava a cabeça ao ritmo do hip-hop que continuava a tocar. Gostava realmente daquela música, embora Jenny suspeitasse que não prestava atenção às letras.

– Sentes muito a falta dela, não sentes? – perguntou Laura.

Era o tipo de pessoa que sabia tudo o que se passava com cada um, como se fosse capaz de ler o pensamento.

– Sim, muito – admitiu Jenny. – Pensava que estava preparada e não entendo porque está a afetar-me tanto. Não está a correr nada bem. De facto, está a correr mal. Não sou capaz de enfrentar a sua morte, nem de viver sozinha.

Endireitou os ombros, tentando afastar aquela sensação de medo e melancolia. O pior era que não se sentia capaz de o fazer. De alguma forma, tinha perdido o controlo e, embora se sentisse a partir-se por dentro, não era capaz de fazer nada para o evitar.

Em algum lugar, no meio da escuridão, começou a tocar uma sirena. O som era cada vez mais intenso, parecia um grito frenético. Dois cães uivaram em resposta. Jenny virou-se automaticamente para a janela. Avalon era uma vila suficientemente pequena para que o som de uma sirena na escuridão fosse notícia. De facto, a última vez que Jenny recordava ter ouvido uma sirena fora no dia em que ela tivera de chamar a ambulância.

Não a tinham deixado ir com a sua avó, portanto, tivera de seguir a ambulância até ao hospital Benedictine de Kingston a conduzir o seu próprio carro. Uma vez lá, suplicara à sua avó que rescindisse a ordem de não reanimação cardíaca que tinha assinado depois do primeiro ataque que tivera, mas a sua avó não queria sequer ouvir falar disso. De modo que, quando tinham começado a falhar as forças a Helen, a única coisa que tinha podido fazer fora despedir-se dela.

Sentiu que um novo ataque de pânico tentava abrir caminho, mas conseguiu aplacá-lo amassando ao ritmo que a sua avó lhe tinha ensinado, trabalhando a massa com segurança e firmeza. Quem estivesse a vê-la pensaria que era uma padeira profissional e também ela estava consciente de que a sua aparência não a denunciava. O terror que a invadia por dentro era invisível.

– Vou apanhar um pouco de ar fresco – disse a Laura.

– Já não se ouve a sirena. Talvez apareça aqui aquele rapaz namoradeiro.

Laura referia-se a Rourke McKnight, o chefe da polícia de Avalon. Tinha uma reputação que não podia passar despercebida num lugar como Avalon. De facto, Jenny e ele tinham chegado a conhecer-se intimamente, mas há já muito tempo. Há anos que não se falavam. Rourke passava pela padaria todas as manhãs para beber um café, mas, como Jenny trabalhava no andar de cima, os seus caminhos nunca se cruzavam. De facto, os dois esforçavam-se para se evitarem.

Para isso, Jenny vira-se obrigada a memorizar a rotina do agente de polícia. Durante a semana, trabalhava as mesmas horas que qualquer outro chefe de departamento, mas, devido a um corte no orçamento municipal, tinha de se contentar com um salário inferior ao que lhe correspondia e com um corpo de agentes mais limitado do que inclusive uma localidade tão pequena como aquela necessitava, de modo que, durante os fins de semana, fazia alguns turnos ou patrulhava como qualquer outro agente. Às vezes, era inclusive ele que se encarregava de conduzir o limpa-neves. Jenny fingia não saber nada daquilo, fingia não ter nenhum interesse na vida de Rourke McKnight e ele devolvia-lhe o favor ignorando-a descaradamente. No entanto, mandara-lhe flores no funeral da sua avó. A mensagem do cartão era um «Lamento» taciturno, mas acompanhava-o um ramo do tamanho de um camião.

Enquanto vestia a parka e saía pela porta das traseiras da padaria, Jenny sentiu a já previsível chegada de um ataque. Sentia uma comichão desagradável na nuca e um exército invisível de formigas a subir-lhe pelas costas e pela cabeça. Sentia um aperto no peito e a garganta parecia prestes a fechar-se. Apesar da temperatura baixa, começou a suar. Depois, chegaram as luzes intermitentes que via pelo canto do olho.

Meteu-se no beco que havia atrás da padaria e inspirou profundamente. Mas exalou imediatamente o ar ao sentir na boca o sabor acre a fumo de um cigarro Newport.

– Meu Deus, Zach – disse ao rapaz, que fumava apoiado contra a parede do edifício, – esses cigarros vão acabar contigo...

– Não – respondeu, enquanto deitava a cinza no balde do lixo. – Deixarei de fumar antes.

– Sim, sim – Jenny pigarreou. – Isso é o que toda a gente diz.

Odiava que os jovens começassem a fumar tão cedo. Era verdade que o seu avô fumava tabaco de enrolar, mas, quando o seu avô era jovem, não se conheciam os perigos do tabaco. No século XXI, não havia desculpa para fumar. Jenny agarrou num punhado de neve e atirou-a ao cigarro, apagando-o com sucesso.

– Eh! – protestou Zach.

– És um rapaz inteligente, Zach, e ouvi dizer que és um grande aluno. Como é possível que faças algo tão estúpido como fumar?

Zach encolheu os ombros e teve, pelo menos, a deferência de se mostrar envergonhado.

– Pergunta-o ao meu pai. Sou estúpido em imensas coisas. Quer que passe o ano que vem a trabalhar no hipódromo de Saratoga para pagar a universidade.

Jenny sabia, pelas escassas gorjetas que deixavam no café, que Alger, o diretor municipal de finanças, transferia a sua mesquinharia para a sua vida pessoal e, pelos vistos, também para a do seu filho. Jenny, que tinha crescido sem pai, sentira a falta de uma figura paterna muitas mais vezes do que era capaz de contar. No entanto, Matthew Alger era a prova viva de que as relações das quais se sentiam a falta eram, por vezes, sobrevalorizadas.

– Ouvi dizer que deixar de fumar poupa ao fumador médio perto de cinco dólares por dia – disse-lhe.

Perguntava-se se a sua voz também pareceria estranha a Zach, se também se daria conta do esforço que tinha de fazer para que cada uma das suas palavras conseguisse superar a tensão que sentia na garganta.

– Sim, eu também o ouvi – atirou o cigarro molhado para o lixo. – Não te preocupes – disse-lhe, antes que pudesse repreendê-lo, – lavarei as mãos antes de voltar para o trabalho.

No entanto, não parecia ter pressa em partir. Jenny perguntou-se se quereria falar com ela.

– É verdade que o teu pai quer que passes um ano a trabalhar antes de ires para a universidade?

– Quer que passe um ano a trabalhar e ponto. Não para de me dizer que ele não recebeu nenhuma ajuda da sua família para ir para a universidade, que chegou onde está pelos seus próprios méritos e tudo isso – respondeu, sem nenhuma admiração.

Jenny perguntou-se pela mãe de Zach, que tinha voltado a casar-se e se mudara para Seattle há muito tempo. Zach nunca falava dela.

– E o que é que tu queres, Zach? – perguntou-lhe Jenny.

Zach pareceu sobressaltado, como se tivesse passado muito tempo desde a última vez que alguém lhe fizera aquela pergunta.

– Ir estudar para outro lugar – respondeu. – Viver num sítio diferente.

Jenny compreendia-o. Com a sua idade, ela também tinha a certeza de que longe dali a esperava uma vida entusiasmante e divertida. No entanto, não fora capaz de partir.

– Nesse caso, é o que deverias fazer – animou-o.

– Suponho que, pelo menos, o tentarei. E, agora, tenho de voltar para o trabalho.

Zach entrou na padaria, mas Jenny continuou onde estava, a respirar devagar no meio da noite gelada. Embora a conversa tivesse conseguido distraí-la durante alguns minutos, não tinha servido para aliviar o seu pânico. Voltava a encontrar-se sozinha, com aquela sensação que rugia dentro dela como as sirenas no meio do silêncio noturno. E, tal como o som das sirenas, a sensação era cada vez mais intensa, mais próxima. Tinha a sensação de que as estrelas se abatiam sobre ela, provocando uma tensão insuportável nos seus ombros.

«Rendo-me», pensou e enfiou a mão no bolso das calças para tirar os comprimidos. Eram pequenos, portanto, conseguiu engolir sem necessidade de água, sabendo que demoraria poucos minutos a fazer efeito. Era espantoso, pensou, que uma coisa tão pequena pudesse tranquilizar os batimentos violentos do seu coração e aliviar o frio que intumescia o seu cérebro.

– Tome-os somente quando precisar – tinha-lhe advertido o médico. – Esta medicação pode ser muito viciante e o processo de desintoxicação é particularmente desagradável.

Apesar da advertência, quando guardou o frasco no bolso, já estava mais tranquila.

Pensando ainda em Zach, percorreu a rua com o olhar. Estavam no centro da vila, formado por edifícios antigos de tijolo que albergavam todo o tipo de negócios, lojas e restaurantes. Anos antes, se alguém lhe tivesse dito que com a sua idade continuaria a viver em Avalon e a trabalhar na padaria, teria desatado a rir-se. Tinha grandes planos naquela altura. Queria deixar aquele lugar tão pequeno e isolado do mundo onde tinha crescido, queria ir para a cidade grande e poder ter uma carreira.

Provavelmente, não seria justo contar a Zach o segredo desagradável de que, às vezes, a vida se encarregava de frustrar os melhores planos. Aos dezoito anos, Jenny tinha descoberto as falhas terríveis do sistema de saúde, sobretudo, para os trabalhadores independentes. Aos vinte e um, já sabia o que era declarar a bancarrota e mal conseguir sustentar a casa da família. Mas, obviamente, não ia abandonar a sua avó, viúva e inválida, depois de ter sofrido um derrame cerebral.

A medicação começou a fazer efeito, cobrindo as arestas afiadas dos seus nervos como o manto de neve cobria a paisagem escarpada. Respirou fundo lentamente, com o olhar fixo na nuvem de vapor que formava e que desaparecia diante dos seus olhos.

Se olhasse para norte, em direção a Maple Street, o céu parecia iluminado por uma luz estranha. Pestanejou. Talvez fosse um efeito do ataque de pânico. Deveria habituar-se àquele tipo de reações.

Dois

 

Quando indicaram no monitor do carro-patrulha que se dirigissem para o número quatrocentos e setenta e dois de Maple Street, o sangue de Rourke McKnight gelou-lhe nas veias. Aquela era a casa de Jenny.

Ele estava do outro lado da vila, mas, assim que recebeu a chamada, agarrou no rádio, anunciou a sua localização e dirigiu-se a toda a velocidade para lá, enquanto dizia ao operador:

– Vou para lá. Aviso-te quando tiver o código onze – a sua voz soava curiosamente firme, tendo em conta a intensidade dos sentimentos que rugiam no seu interior.

A primeira notícia que teve foi que a casa, a casa de Jenny, estava envolta em chamas e que Jenny não aparecia em lado nenhum.

Quando chegou lá, a casa estava arder dos alicerces até ao telhado. As labaredas saíam de todas as janelas e acariciavam os beirais do telhado.

Rourke estacionou, enfiando um dos faróis na neve ao fazê-lo, saiu do carro sem se incomodar em fechar a porta atrás dele e fez uma análise da situação. Os bombeiros, os carros e a equipa, eram banhados por uma luz cor de laranja. Enfrentavam o fogo com duas mangueiras enormes. Os homens tentavam desenterrar uma boca de incêndio da neve. Tudo se desenrolava com uma serenidade surpreendente, não havia nada parecido ao caos. Mas, mesmo assim, a barreira de fogo era impenetrável e nem sequer um bombeiro totalmente equipado conseguia aceder ao interior da casa.

– Onde está? – perguntou Rourke a um bombeiro que estava a comunicar por um rádio portátil. – Onde raios está?

– Não encontrámos nenhum residente – respondeu o homem, dirigindo um olhar fugaz a uma ambulância estacionada na estrada. – Estamos a começar a pensar que não está em casa... No entanto, está lá o seu carro.

Rourke deu um passo para a casa em chamas, chamando Jenny aos gritos. A casa inteira ardia como uma fogueira. Uma janela rebentou e Rourke foi atingido pela chuva de vidros. Com um gesto reflexo, protegeu os olhos com a mão.

– Jenny! – voltou a gritar.

Num instante, todos os anos de silêncio pareceram dissolver-se e só sentiu arrependimento. «Como se tivesse conseguido alguma coisa ao evitá-la», pensou. Era um estúpido. Começou a suplicar a quem quer que pudesse ouvi-lo. Necessitava que não lhe acontecesse nada e, se se safasse daquela, prometia mantê-la para sempre a salvo sem nunca lhe pedir nada em troca.

Tinha de entrar na casa. Os degraus da frente tinham desaparecido debaixo do fogo. Correu para a porta das traseiras, escorregou na neve e levantou-se. Alguém gritava, mas ele continuou a correr. Também a parte traseira da casa estava em chamas, mas o fogo tinha devorado a porta. Viu os bombeiros a correrem para ele e agitarem os braços. Bolas! Era estúpido, sim, mas aquela não era, nem de longe, a maior loucura que já tinha cometido na sua vida. Cobriu o nariz e a boca com o casaco, e entrou na casa.

Já estivera muitas vezes naquela cozinha, mas, naquele momento, pareceu-lhe irreconhecível. E era-lhe impossível respirar. Sentia o fogo a roubar-lhe o ar dos pulmões. Tentou chamar Jenny, mas não saiu grito algum da sua garganta. O chão de linóleo borbulhava e derretia-se debaixo dos seus pés. A porta que conduzia às escadas estava transformada num retângulo de fogo, mas encaminhou-se para lá na mesma. Até que uma mão forte o puxou para trás.

Rourke tentou escapar, mas, um segundo depois, algo, provavelmente o corrimão do andar de cima, caiu numa chuva de estuque e fogo. O bombeiro empurrou-o para a porta das traseiras.

– O que raios estás a fazer? Chefe, tem de sair daqui. Este lugar não é seguro.

A Rourke ardia-lhe a garganta enquanto tentava respirar. Começou a tossir.

– Não vou sair daqui. Se não mandarem alguém, entrarei eu.

O bombeiro, que Rourke conhecia, colocou-se à frente dele.

– Não posso deixá-lo entrar.

A fúria dominava-o com uma força irracional. Afastou o bombeiro do seu caminho com o braço.

– Afasta-te! – resmungou.

O bombeiro não disse uma única palavra. Limitou-se a retroceder com os braços no ar, enquanto ele o atravessava com o olhar.

– Escute, estamos do mesmo lado. Já viu como está a casa. Não duraria nem trinta segundos lá dentro. Não achamos que haja alguém lá dentro, a sério! Se houvesse alguém, já teria saído ou tê-lo-íamos encontrado.

Rourke abriu os punhos lentamente. Bolas! Estivera prestes a bater naquele tipo. No que raios estava a pensar?

Não estava a pensar, esse era precisamente o problema. Esse fora sempre o seu problema. Precisava de descobrir onde estava Jenny. Na sua mente surgia todo o tipo de hipóteses. Talvez estivesse na casa de Nina, a melhor amiga dela. Mas àquela hora da noite? Ou talvez na casa de Olivia Bellamy. Não, pensou imediatamente, não eram assim tão próximas. Bolas, andaria a sair com alguém e ele não sabia?

E, de repente, ocorreu-lhe. Era óbvio, tinha de estar lá.

– Bolas! – exclamou e correu para o carro.

 

 

Jenny ainda estava na rua, no meio da escuridão, quando uma luz azulada iluminou a noite. Aquela luz repentina não era algo previsível a meio da noite. Ouviu as sirenas e compreendeu que se tratava das luzes de emergência de um carro-patrulha. O carro estava cada vez mais perto. Estava a ser uma noite muito agitada, pensou, enquanto se dirigia para a padaria. Passou pela zona de trabalho, onde Zach continuava a colocar a massa na câmara de fermentação.

Jenny estava prestes a regressar ao trabalho quando ouviu que batiam à porta.

– Vou ver quem é – disse a Zack e a Laura.

Atravessou o café, que àquela hora da madrugada só estava iluminado pelo letreiro de néon em forma de uma chávena de café fumegante.

O azul-elétrico das luzes do carro-patrulha filtrava-se pelas janelas do café. Jenny abriu a porta a toda a velocidade. A campainha da porta tilintou e Rourke McKnight entrou com passos largos.

O chefe da polícia de Avalon tinha a imagem apropriada para o cargo: queixo quadrado perfeitamente barbeado e ombros largos e fortes. Embora fosse loiro e de olhos azuis, a cicatriz que lhe atravessava a face impedia que a sua beleza pudesse ser considerada branda.

– Tenho a sensação de que não vieste beber um café – disse Jenny.

Provavelmente, eram as primeiras palavras que lhe dirigia em anos.

Rourke olhou para ela com uma expressão sombria que a fez perguntar-se como se sentiria se fizesse parte do grupo de mulheres que pareciam fazer parte da sua vida com uma certa regularidade. Mas para que queria ela somar-se a um grupo de mulheres bonitas e tontas?

Rourke agarrou-a pelo braço.

– Jenny, estás aqui – disse, com ansiedade.

Muito bem, aquilo começava a ficar interessante. Rourke McKnight estava a agarrá-la pelo braço e parecia querer abraçá-la. O que raios fizera para merecer aquilo?

– Não conseguia dormir – respondeu.

Observou a mão que Rourke pousava sobre a sua. Rourke e ela nunca se tocavam. Não tinham voltado a tocar-se desde...

Rourke pareceu ler-lhe o pensamento e largou-a, enquanto apontava para a porta com a cabeça.

– Houve um problema na tua casa. Vou levar-te até lá.

Apesar da confusão mental que lhe provocava o seu tranquilizador, Jenny sentiu uma inquietação profunda e visceral.

– Que tipo de problema?

– A tua casa está em chamas – limitou-se a responder Rourke.

Jenny formou um «Oh» com a boca, mas não foi capaz de emitir nenhum som. O que podia dizer depois de uma frase como aquela?

– Vai – interveio Laura, estendendo-lhe a parka e as botas. – Telefona-me quando souberes o que aconteceu.

A tranquilidade artificial provocada pelo medicamento não se alterou quando Jenny entrou no carro-patrulha que Rourke conduzia aos fins de semana. As luzes nem sequer a fizeram piscar os olhos, mas tinha todos os sentidos alerta. Eram as maravilhas da Ciência moderna.

– O que aconteceu? – perguntou.

– A senhora Samuelson chamou os bombeiros.

Irma Samuelson era vizinha dos Majesky há anos.

– É impossível – replicou Jenny. – Como pode a minha casa estar a arder?

– Põe o cinto – pediu-lhe Rourke.

No instante em que Jenny colocou o cinto, arrancou a toda a velocidade.

– Tens a certeza de que não há nenhum engano? – perguntou Jenny. – Talvez seja outra casa.

– Não há nenhum engano. Verifiquei-o pessoalmente. Meu Deus, pensava que... Bolas!

Tremia-lhe a voz?

– Oh, não... – murmurou Jenny. – Rourke, pensavas que eu estava em casa?

– Era lógico assumi-lo a esta hora da noite.

Portanto, fora por isso que a tinha agarrado com tanta força. Fora uma reação de alívio, pura e simplesmente. Enquanto se dirigiam para Maple Street, esteve consciente do cheiro no interior do carro.

– Cheira a fumo.

– Se não te importares de passar frio, podes baixar o vidro.

– Mas de onde vem este cheiro a...? – interrompeu-se. – Oh, meu Deus, entraste na minha casa, não foi? – imaginava-o a lutar com os bombeiros para abrir caminho até à casa em chamas. – Tentaste salvar-me.

Rourke não respondeu. Não foi preciso que o fizesse. Rourke McKnight andava sempre a salvar pessoas. Era algo quase compulsivo para ele.

– Deixaste o fogão ligado? Algum eletrodoméstico?

– É óbvio que não! – replicou, furiosa.

A pergunta irritou-a porque a assustava. Porque sabia que era possível que tivesse tido alguma desorientação. Vivia sozinha e talvez estivesse a começar a fazer coisas estranhas.

– Estás bem? – a voz de Rourke interrompeu os seus pensamentos.

– O quê? – perguntou-lhe, obrigando-se a baixar o olhar.

– Estás bem, Jenny?

– Acabaste de me dizer que a minha casa está em chamas. Suponho que, numa situação como esta, ninguém possa estar bem.

– Queria dizer...

– Sei o que querias dizer. Parece-te que estou nervosa?

Rourke olhou para ela de soslaio.

– Parece-me que estás bastante fria, tendo em conta as circunstâncias. Mas ainda não chegámos. Quando os bombeiros dizem que toda a estrutura está envolta em chamas, sabes o que quer dizer? – perguntou-lhe.

– Não, eu... – interrompeu-se a meio da frase quando viu a sua rua ao virar da esquina. O coração começou a pulsar-lhe violentamente no peito. – Meu Deus...

Os dois extremos da rua estavam cortados pela ambulância e pelos bombeiros. As luzes ambarinas dos triângulos resplandeciam na escuridão. Os vizinhos, com os casacos vestidos sobre o pijama, concentravam-se nos alpendres e nos jardins, olhando para cima, boquiabertos, como se estivessem a ver o fogo de artifício do quatro de julho. Mas não havia sorrisos nos seus rostos e também não se ouviam exclamações de admiração.

Os bombeiros rodeavam a casa, lutando contra as chamas que iluminavam os dois andares do edifício.

Rourke parou o carro e os dois saíram. Os vidros das janelas do andar de cima tinham rebentado um após o outro, como se alguém tivesse disparado uma arma.

Aquelas janelas davam para o corredor do andar de cima, onde estavam as fotografias da família, um retrato antigo dos seus avós e algumas fotografias da mãe de Jenny, Mariska, uma beldade de vinte e três anos que tinha ficado parada no tempo desde o ano em que tinha desaparecido. Também havia muitas fotografias de Jenny.

Quando era criança, costumava correr por aquele corredor, até que a sua avó lhe pedia que se acalmasse. Jenny sempre tinha gostado daquela expressão: «acalma-te». Quando a sua avó a dizia, levava as mãos à cabeça e começava a assobiar.

Gostava de inventar histórias sobre as pessoas que apareciam nas fotografias. Os seus avós, que olhavam para a máquina fotográfica com a rigidez típica dos emigrantes recém-saídos da ilha de Ellis, transformavam-se em estrelas da Broadway. A sua mãe, cujos olhos enormes pareciam guardar um segredo delicioso, era uma espia que trabalhava para proteger o mundo e que vivia tão secretamente que não podia sequer dizer à sua família onde estava.

Alguém, um bombeiro, estava a gritar para que toda a gente se afastasse, para que mantivessem a distância de segurança. Outros bombeiros corriam à volta da casa, com uma mangueira pesada ao ombro. Na autoescada do carro de bombeiros, um homem lutava contra o fogo do telhado.

– Jenny, graças a Deus! – exclamou a senhora Samuelson, correndo para ela. Usava um casaco de pele de camelo, as botas e trazia Nutley, um Yorkshire trémulo, nos braços. – Quando vi o fogo, pensei que estavas lá dentro.

– Estava na padaria – explicou-lhe Jenny.

– Senhora Samuelson, já prestou declarações? – perguntou-lhe Rourke.

– Sim, mas eu...

– Com licença.

Rourke agarrou Jenny pela mão e conduziu-a para a parte de trás de um carro-patrulha. Lá, um homem estava a dar ordens através de um walkie-talkie, enquanto outro retransmitia as ordens por um megafone.

– Chefe, esta é Jenny Majesky – disse Rourke, sem lhe largar a mão.

– Menina, lamento pela sua casa – disse o chefe de bombeiros. – Chegámos oito minutos depois de termos recebido a chamada, mas já não pudemos fazer nada. Estas casas tão antigas tendem a arder muito depressa. Estamos a fazer tudo o que podemos.

– Eu... Obrigada, suponho – não tinha a mínima ideia do que se podia dizer quando se tinha a casa em chamas.

– Os seus vizinhos disseram que não tem animais de estimação.

– É verdade.

Só tinha as violetas africanas e as plantas da estufa. Apenas todo o seu mundo, tudo o que possuía, pensou Jenny. Apesar de toda a roupa que usava e do calor das chamas, estava a tremer.

Então, sentiu algo quente e pesado à volta dos ombros. Demorou vários segundos a dar-se conta de que era uma manta de primeiros socorros. E os braços de Rourke McKnight, que permanecia atrás dela, apertando-a contra ele e rodeando-a com os braços, como se quisesse protegê-la de qualquer mal.

Com uma sensação estranha de rendição, encostou-se a ele, como se fosse incapaz de aguentar o seu próprio peso. Fechou os olhos por um instante, protegendo-os do fumo. Sentia o calor do fogo na cara. Mas o cheiro acre do fumo provocava-lhe náuseas e fazia-a imaginar tudo o que havia no interior da casa a ser devorado pelas chamas. Abriu os olhos e observou com atenção.

– Está arrasada – murmurou e virou a cabeça para Rourke. – Desapareceu tudo.

Um homem com uma máquina fotográfica, provavelmente, o fotógrafo do jornal local, estava na parte de trás de uma carrinha, a fotografar a cena.

Rourke esticou o braço à sua volta.

– Lamento, Jen. Gostaria de poder dizer-te que estás enganada.

– E o que acontecerá agora?

– Abrir-se-á uma investigação para descobrir a causa – explicou-lhe. – E o seguro pedir-te-á um inventário de tudo o que perdeste.

– Refiro-me a neste momento, durante os próximos vinte minutos. A próxima hora. Daqui a algumas horas, apagarão o fogo, mas e depois? Terei de voltar para a padaria e dormir debaixo da minha secretária?

Rourke inclinou a cabeça. Tinha a boca tão perto da orelha de Jenny, que ela conseguia ouvi-lo apesar do rugido do fogo. Sentia também o seu corpo inclinado sobre ela.

– Não te preocupes com isso – disse-lhe. – Eu certificar-me-ei de que tenhas onde dormir.

Acreditou nele, obviamente. E tinha boas razões para isso. Conhecia Rourke McKnight há muitos anos. Apesar dos seus problemas pessoais, apesar do sentimento de culpa, da dor que noutros tempos tinham provocado um ao outro e do abismo enorme que se abrira entre eles, Jenny sempre soubera que podia contar com ele.