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As cores do céu

 

HarperCollins 200 anos. Desde 1817.

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

As cores do céu

Título original: The Color of our Sky

© 2017, Amita Trasi

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Mario Arturo

Imagens de capa: Dreamstime.com e Shutterstock

 

ISBN: 978-84-9139-129-6

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

 

As cores do céu

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Nota do autor

Agradecimentos

Glossário

 

 

 

 

 

 

Em memória do meu falecido pai;

Para Sameer, o meu extraordinário marido;

E, por último, mas não menos importante,

para as raparigas como Mukta: que possam sempre

encontrar um amigo que vos ajude a atravessar a escuridão.

Capítulo 1

 

 

 

TARA

Bombaim, Índia, junho de 2004

 

 

A memória daquele momento atingiu-me como uma onda que se erguia do oceano e me arrastava para o seu interior: o cheiro amargo a escuridão, aqueles soluços a irromper como um eco vindo de uma vala sem fundo. Tentara fugir-lhe durante tanto tempo que me esquecera de que os lugares também podem ter memórias. De pé, no corredor escassamente iluminado à entrada da minha casa de infância, tentei destrancar a porta. As chaves chocalharam nas minhas mãos e caíram no chão. Estava a revelar-se mais difícil do que eu pensara. Respira fundo para ganhares coragem, costumava dizer-me o Papa[1] quando eu era criança. Agora, aos vinte anos, aqui estava eu, à entrada desta porta trancada, a sentir-me novamente como uma criança.

Apanhei as chaves e tentei novamente. As portas rangeram quando as consegui abrir com um empurrão. O apartamento estava escuro. Lá fora, o céu trovejava e a chuva embatia contra os telhados. Um raio de luz oblíquo caía, perdido, sobre a mobília que acumulara pó ao longo dos anos, e eu fiquei de pé naquela divisão às escuras, observando as velhas teias de aranha que se aglomeravam nos cantos daquela que, em tempos, fora a minha casa. Acendi as luzes e limpei o pó da secretária onde costumava escrever, passando a mão sobre ela, suavemente. É só um apartamento, disse para mim própria. Mas havia aqui tantas coisas da minha infância: a secretária onde o Papa, sentado ao meu lado, me ensinara a escrever e o sofá onde tínhamos visto televisão juntos, em família.

No meu quarto, a cama continuava cuidadosamente coberta, exatamente como a deixara. Consegui ouvir o som das nossas gargalhadas, sentir o cheiro da minha infância (da comida que a Aai[2] cozinhava e me dava afetuosamente para comer): aquele aroma floral a açafrão que pairava sobre o pulao, o dal perfumado de curcuma, as doces rasgullas. Claro que, agora, não existia nenhum desses aromas, já não. Restava apenas um cheiro bafiento que emanava de portas fechadas, de segredos enterrados.

Uma nuvem de pó levantou-se quando afastei as cortinas. Lá fora, a chuva caía suavemente e as folhas bebericavam-lhe as gotas. O cenário ainda era o mesmo de quando eu e o Papa tínhamos partido para Los Angeles, onze anos antes: o corrupio do trânsito, as buzinas dos riquexós e carros, o ladrar distante dos cães vadios, os bairros de lata que se espraiam ao longe. Aqui, de pé, com a minha mala solitária à entrada da porta, percebi por que motivo o Papa nunca tentara vender ou alugar este apartamento. Depois de construir um lar na América durante onze anos, esperara regressar um dia para procurar Mukta. Afinal, foi daqui que a raptaram.

Diz-se que o tempo cura tudo. Não me parece que isso seja verdade. Com o passar dos anos, apercebi-me, com estranheza, de como coisas simples conseguem recordar-nos tempos terríveis ou de como o momento que tentamos tão arduamente esquecer se torna a nossa memória mais nítida.

 

 

Saí do apartamento nesse dia determinada a encontrar respostas. Os taxistas faziam fila de pé, aguardavam, esperavam, suplicavam que alguém fizesse uma viagem com eles. Havia qualquer coisa nesta cidade que eu nunca esqueceria. Via-a em todo o lado, cheirava-a, ouvia-a: os sonhos que persistiam nos rostos das pessoas; o cheiro a suor e sujidade; o som do caos distante no ar. Fora aqui que acontecera: que as paredes tinham explodido em mil pedaços, que os veículos tinham rebentado pelos ares, que simples estilhaços de vidro tinham rasgado vidas e que os nossos entes queridos se tinham transformado em memórias. Enquanto aqui estava, imóvel, uma imagem da Aai pairou diante dos meus olhos, à minha espera nalgum lugar, com os olhos pintados a lápis a inundarem-se de lágrimas ao pegar-me ao colo. Tudo era diferente antes de as explosões terem vindo e a terem levado.

— Senhora, eu levar a qualquer lado onde querer ir — gritou um taxista.

— Não, aqui, aqui… — acenou outro taxista.

Assenti com a cabeça na direção de um deles, que saltou apressadamente para trás do volante. Começou a chuviscar quando entrei. A chuva caía suavemente à nossa volta.

— Leve-me à esquadra da polícia em Dadar — disse-lhe.

— Senhora, você vinda do estrangeiro, não? Eu perceber pelo forma de falar. Eu levar aos mais bons hotéis de Bombaim. Senhora vai…

— Leve-me à esquadra da polícia — repeti, asperamente.

O condutor foi calado durante o resto do caminho, cantarolando discretamente a melodia da música de Bollywood que ressoava através das colunas do táxi. Lá fora, os moradores dos bairros de lata e as crianças da rua que vasculhavam o lixo passavam por nós. O calor pairava sobre a cidade, apesar dos chuviscos, e o vento cheirava a fumo, caril e esgotos. As pessoas continuavam a caminhar perigosamente próximas do tráfego acelerado; os riquexós avançavam ruidosamente mesmo ao lado e os mendigos batiam na janela do táxi para pedir dinheiro. Os passeios continuavam a alojar muitos dos pobres que viviam em tendas temporárias; as mulheres regateavam com os vendedores ambulantes nos bazares e os homens vadiavam pelas esquinas com olhares vazios. Atrás deles, cartazes cinematográficos de Bollywood anunciavam os últimos filmes.

Quando era criança, o Papa tinha-me trazido para dar um passeio por estas mesmas ruas. Uma vez, acompanhara a Aai até aos bazares e regateara ao seu lado com os lojistas. E tinha havido uma vez em que me sentara no banco de trás de um táxi, com Mukta ao lado, enquanto o Papa nos levava à biblioteca asiática. Com quanta excitação lhe mostrara o mar, o jardim, e lhe abrira as portas do meu mundo! Quantas vezes tinha caminhado comigo até à escola, carregando a minha mochila, ou se tinha sentado comigo no banco do parque, sorvendo ruidosamente golas gelados? Agora, sentada no banco de trás deste táxi, sentia o estômago a revolver-se. Aqueles momentos pareciam paralisar-me; não conseguia respirar, como se o crime que cometera estivesse lentamente a estrangular-me. Aproximei o rosto da janela aberta e forcei-me a respirar.

— Aqui, senhora, aquela é a esquadra da polícia — anunciou o condutor enquanto encostava.

Estava a chover muito quando o táxi parou e os limpa-para-brisas chicoteavam desenfreadamente o vidro. Fiquei com água até aos tornozelos ao sair, enquanto a chuva bombardeava violentamente o meu guarda-chuva. Paguei ao taxista. Ao longe, perto dos caixotes do lixo, crianças vestidas com impermeáveis salpicavam água umas sobre as outras e as suas gargalhadas chegavam em ondas.

 

 

Na esquadra, encontrei um lugar no banco do canto e pousei a mala no colo. Há onze anos, eu e o Papa tínhamo-nos sentado num banco como este, nesta esquadra da polícia, à espera durante horas para perceber o que é que nos tinha acontecido, procurando entender tudo aquilo. Agora, enquanto me sentava direita, ensanduichada entre estranhos à espera de vez, desejei que o Papa estivesse sentado ao meu lado. De alguma forma, ainda o trazia comigo; os seus restos mortais, as suas cinzas, bem fechadas numa garrafa na minha mala. Trouxera-as até aqui para as espalhar no rio Ganges, algo que precisava de fazer para respeitar os seus últimos desejos.

Havia um agente da polícia sentado numa mesa próxima de mim, com a cabeça atrás de uma montanha de processos; atrás dele, sentado noutra mesa, outro agente ouvia queixas e anotava-as num registo, enquanto um outro, sentado numa cadeira não muito distante, mantinha a cabeça enterrada num jornal. Um chaiwalla passou por nós apressadamente, transportando masala chai e colocando os copos de líquido castanho em todas as mesas. Lá fora, sirenes da polícia atravessaram o ar e um grupo de agentes arrastou dois homens algemados para o interior da esquadra.

A mulher que estava antes de mim soluçou e implorou ao agente que encontrasse o filho desaparecido. Ele bocejou, rabiscou qualquer coisa no registo e depois enxotou-a. Quando chegou a minha vez, sentei-me à sua frente. Esfregou os olhos.

— Qual é a sua queixa? — perguntou, soando aborrecido.

— Quero falar com o seu inspetor-chefe.

Ergueu os olhos do registo e semicerrou-os.

— Sobre o quê, minha senhora?

O quadro de madeira atrás dele mostrava um gráfico do número de homicídios e raptos ocorridos no ano em curso e dos casos que a polícia conseguira resolver.

— Sobre um rapto que ocorreu há onze anos. Uma rapariga foi raptada. O meu pai apresentou queixa nessa altura.

— Há onze anos? — O agente ergueu o sobrolho. — E quer procurá-la agora?

Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.

Olhou para mim com curiosidade e suspirou:

— Está bem, aguarde um momento — disse ele, depois caminhou até uma sala fechada e bateu à porta. Um inspetor abriu a porta; o agente apontou para mim e sussurrou algo. O inspetor olhou para mim de relance e depois caminhou na minha direção.

— Inspetor Pravin Godbole — disse, apertando-me a mão e apresentando-se como o inspetor-chefe da esquadra.

— Tenho… estou… à procura de uma rapariga que foi raptada. Por favor Inspetor, tem de me ajudar. Eu, eu, acabei de chegar da América, fiz uma viagem de avião muito longa.

— Dê-me uns minutos, por favor. Tenho uma pessoa no escritório. Posso examinar o seu caso depois disso.

 

 

Passaram duas horas até o agente me acompanhar ao escritório do inspetor-chefe. Entretanto, comi uma sandes que guardara na mala e observei o agente a anotar mais algumas queixas. As pessoas entravam, esperavam ao meu lado e partiam, depois de o agente ter registado as respetivas queixas. O chaiwalla ofereceu-me um copo de chai e eu saboreei-o, agradecida. Não me importei de esperar. Senti-me aliviada, mesmo que tenha sido apenas durante um momento, por finalmente poder falar com alguém, alguém com importância suficiente nesta esquadra que me podia ajudar.

O Inspetor Godbole tinha uns olhos perspicazes e inteligentes e eu esperava que conseguissem ver o que outros não tinham conseguido. Pediu-me que me sentasse. O seu chapéu com a insígnia Satyamev Jayate (Só a verdade triunfa) repousava sobre a secretária.

— Em que posso ajudá-la?

Apresentei-me e sentei-me, abri a carteira e tirei a fotografia. Como parecíamos novas naquela altura, Mukta e eu, à porta da biblioteca asiática. Pegou na fotografia da minha mão e observou-a.

— Estou à procura dela, da rapariga na fotografia — disse eu.

— Qual delas? — perguntou, franzindo o sobrolho para a fotografia.

— A da direita sou eu. A outra… foi raptada há onze anos.

Arqueou as sobrancelhas.

— Há onze anos?

— Hum… sim. Foi raptada da nossa casa logo a seguir aos atentados à bomba, em 1993. Estava no quarto com ela quando tudo aconteceu.

— Então viu o raptor?

Fiz uma pausa.

— Não… na verdade, não — menti.

O inspetor assentiu com a cabeça.

— O nome dela era… é Mukta. Era uma rapariga… uma órfã que os meus pais acolheram — expliquei. — O meu Papa era um homem bondoso. Costumava trabalhar com muitas ONG e orfanatos no seu tempo livre para encontrar um lar para crianças abandonadas. Às vezes, levava-as para o nosso apartamento. Resgatava crianças da rua ou miúdos pobres das aldeias, um ou dois de cada vez, e deixava-os ficar na nossa casa. Dormiam na cozinha, comiam a comida que a Aai fazia e, depois de alguns dias, o Papa encontrava-lhes um lugar nalgum orfanato. O Papa praticava o bem sempre que podia. Com a Mukta… esforçou-se tanto. Aconteceu-lhe uma coisa na aldeia. Ela não falou durante muito tempo. Ela…

— Entendo, entendo — interrompeu. — Vamos tentar encontrá-la.

Queria dizer-lhe que, ao contrário dos outros miúdos que tinham vivido connosco apenas durante uma semana ou duas, Mukta estivera connosco durante cinco anos. E que era uma amiga chegada. Queria dizer-lhe que gostava de ler poemas e que tinha medo da chuva… e que queríamos crescer juntas.

— Menina Tara?

— O meu… o meu pai tinha apresentado queixa na altura… do… do rapto.

O inspetor inspirou profundamente, coçou os pelos curtos da barba no queixo e aproximou a fotografia do rosto, fitando a imagem. A fotografia estava gasta e enrugada pela idade. Era como uma recordação preciosa, congelada no tempo, ambas a sorrir para a máquina fotográfica.

— Menina Tara, isto foi há tanto tempo. Ela deve estar… mais velha, agora. E não temos nenhuma fotografia recente. Vai ser muito difícil procurar alguém sem uma fotografia recente. Mas deixe-me dar uma olhadela ao processo. Terei de contactar o departamento de pessoas desaparecidas. Para quê procurar uma pobre criança da aldeia depois destes anos todos? Roubou algo de valor da sua casa? Alguma relíquia de família ou qualquer coisa?

— Não. Não… é que… o Papa esforçou-se tanto por dar um lar às outras crianças. Suponho que o Papa achava que a Mukta era a única que tinha escapado por entre as frestas… alguém que não conseguiu proteger. Nunca se perdoou por isso. Na altura, a polícia disse-nos que a tinha procurado. O Papa disse-me que ela tinha morrido. Talvez o inspetor da polícia lhe tenha dito isso. Não sei. Depois disso, o Papa levou-me para a América. Não… não sabia que ela estava viva. Encontrei uns documentos numa gaveta, depois da morte dele. Ele andava à procura dela há muito tempo. E, ao longo de todo esse tempo em que continuou a procurá-la, eu achava que ela estava morta. O Papa iria querer que eu a procurasse.

— Ninguém procura crianças dessas que desapareceram, menina Tara. Veja só todas as crianças que vivem nos bairros de lata: não há ninguém para cuidar devidamente delas, muito menos para se preocupar em saber como estão quando desaparecem.

Olhei para ele, sem dizer nada. Não tinha havido um momento nos últimos onze anos em que não tivesse querido regressar àquela noite de verão, àquela fração de segundo em que poderia ter feito alguma coisa para impedir o que aconteceu. Sabia quem era o raptor; sempre soubera. Afinal de contas, eu tinha planeado aquilo. Mas não o disse ao inspetor, não podia. Haveria muito mais coisas para lhe revelar além dessa informação. De qualquer forma, não queria concentrar-me em por que motivo o fizera ou em quem era o raptor; a única coisa que queria agora era procurar Mukta.

O inspetor bateu suavemente com a fotografia na mão e suspirou ruidosamente.

— Dê-me uns dias. Vou examinar os arquivos. Neste momento estamos sobrecarregados com muitos casos. Pode dar todos os dados ao agente. — Fez-lhe um sinal e pediu-lhe que me acompanhasse lá fora.

— Muito obrigada — disse eu, levantando-me.

Ao chegar à porta, virei-me novamente para ele:

— Seria ótimo se me conseguisse ajudar a encontrá-la. — Ele ergueu a cabeça momentaneamente e assentiu ligeiramente antes de regressar ao trabalho. O agente demorou alguns minutos a apontar os dados.

Saí da esquadra e fiquei de pé no alpendre a observar os jipes da polícia estacionados no exterior, os agentes que transportavam processos, as pessoas que aguardavam impacientemente, e, subitamente, pareceu-me inútil ter vindo a este lugar, ter-lhes pedido a ajuda. Não tinham feito sequer as perguntas certas: Lembrava-me do dia em que tudo acontecera? Que sons ouvira antes de saber o que estava a acontecer? Qual era a hora exata que o relógio do quarto marcava? Por que motivo o raptor não me tinha levado antes a mim? Porque é que não gritei? Porque é que não acordei o Papa, que estava a dormir no quarto ao lado? Se me tivessem feito essas perguntas, receio que teria despejado toda a verdade.

 

 

Acendi um cigarro, dei algumas passas e deixei que o fumo fluísse através das minhas narinas. As duas agentes que estavam no alpendre lançaram-me um olhar sujo. Sorri para mim própria. Não havia muitas mulheres fumadoras por aqui. Experimentara o meu primeiro cigarro na América, com Brian, quando tinha dezoito anos. Brian, o meu noivo, fora em tempos o amor da minha vida e, convenientemente, tinha-o deixado para trás em Los Angeles. Se as coisas não tivessem mudado, Brian e eu estaríamos, neste momento, refastelados numa praia, a observar preguiçosamente o vaivém das ondas. Mas, agora, estava tudo terminado entre nós. Suspirei enquanto reparava na ausência de um anel no meu dedo, atirei a beata do cigarro para o chão e esmaguei-a com o pé.

Uma brisa fria e húmida atingiu-me ao sair da esquadra para uma rua ruidosa no exterior. Uma menina de seis anos com roupas esfarrapadas correu na minha direção, inconsciente dos seus pés sujos e sangrentos, esticou a palma da mão e olhou para mim de modo suplicante. Olhei para os seus olhos esperançosos durante um segundo. Ela não desviou o olhar. Uma equipa de miúdos pedintes observava curiosamente à distância. Procurei na mala e encontrei algumas notas de rupia, que lhe entreguei. Poucos segundos depois, todos os pedintes me rodeavam, implorando dinheiro. Distribuí algumas notas entre eles. As crianças guincharam e berraram de alegria enquanto se afastavam.

— Há algum restaurante aqui perto? — perguntei a um dos rapazes pedintes. Sorriu; os dentes brancos como pérolas brilharam, contrastando com a pele escura.

— Ali, senhora, o melhor masala chai… muito bom, muito zhakas[3] — disse ele, e acenou-me um adeus.

 

 

Não havia muito movimento no restaurante a essa hora do dia. Pousei a mala numa cadeira e pedi uma sandes e chá. Rapazes com idades entre os dez e os doze anos limpavam as mesas. As moscas demoravam-se nas superfícies húmidas. Um empregado de mesa trouxe-me um copo de chai. Lá fora, o céu estava a ficar limpo, com as nuvens a darem lugar ao azul-claro. Nos primeiros tempos após a chegada de Mukta, encontrara-a muitas vezes sentada na nossa arrecadação escura e lúgubre, a olhar fixamente para o exterior pela janela, a fitar as estrelas no céu como se procurasse algo nelas. Lembro-me de uma noite em que, com os meus pais a dormir, caminhara em bicos de pés até ao seu quarto e a encontrara a observar o céu. Ela tinha-se virado para mim, surpreendida pelo facto de eu ter aparecido no escuro.

— O que é que procuras no céu? — perguntara eu.

— Olha — disse ela, apontando para o céu —, vê tu.

Entrei no quarto, sentei-me ao seu lado e observei as estrelas que brilhavam como diamantes no céu noturno.

— A Amma[4] costumava dizer que, quando morremos, nos transformamos em estrelas. Dizia que, quando morresse, se transformaria numa estrela e velaria por mim. Mas, olha, há tantas, não sei qual delas é a Amma. Provavelmente, se mantiver o olhar no céu durante tempo suficiente, vou conseguir encontrar. Talvez me envie um sinal. Não acreditas?

Encolhi os ombros.

— Não sei. Se tu acreditas, talvez seja verdade.

— É verdade — sussurrou. — É preciso, simplesmente, manter o olhar no céu durante o tempo suficiente.

Ficámos ali sentadas durante algum tempo, a observar as estrelas no céu noturno sem nuvens.

Fiquei acordada com ela até tarde nessa noite e durante muitas noites depois dessa. Durante inúmeras noites ao longo dos anos, sentámo-nos sob o luar naquele quarto escuro e lúgubre a falar das nossas vidas. Tornou-se uma forma de escapar do mundo. Foi Mukta que me ensinou que o céu era como um palco onde as nuvens formavam personagens, metamorfoseadas em diferentes formas, que flutuavam na direção umas das outras. O céu contava-nos mais histórias do que algum dia conseguiríamos ler, mais do que as nossas imaginações conseguiriam inventar.

 

 


[1] Forma de tratamento utilizada na Índia para «pai». (N.T.)

[2] Forma de tratamento utilizada na Índia para «mãe». (N.T.)

[3] Termo popularizado pelos filmes de Bollywood; significa «excelente». (N.T.)

[4] Forma de tratamento utilizada na Índia para «mãe». (N.T.)